Lucas 18/06/2018
Quando um livro é mais humano que muitas pessoas...
A paulistana Lygia Fagundes Telles (1923-) é reconhecidamente uma das maiores literatas brasileiras do século XX. Sua habilidade narrativa foi apresentada ao grande público em 1954, com a publicação do seu primeiro grande livro, Ciranda de Pedra. Antes valorizada mais restritamente aos contos, a obra trouxe uma enorme popularização da autora (as duas adaptações a novelas de televisão são uma prova disso), culminando até com uma indicação ao Nobel de Literatura, em 2016. Boa parte dessa sua reputação foi construída pelo romance citado porque ele condensa, em cerca de 200 páginas de narrativa, uma história de caráter lúdico, mas cru; direto, mas poético; perturbador, mas edificante.
A história é contada em terceira pessoa, sempre sob o ponto de vista de Virgínia, filha caçula de uma família com outras duas irmãs (Otávia e Bruna) e com pais separados (Natércio e Laura). A narrativa dividida em duas partes dignifica o talento da autora. Na primeira dessas partes, tem-se uma Virgínia criança (não são mencionadas datas nem locais específicos, mas ela deve ter entre 8 a 10 anos) e a narrativa é montada sob um viés mais infantil: são enfatizadas questões como sonhos, pensamentos e mistificações que só existem na mente de uma criança. Na segunda parte, a narrativa muda o tom de uma forma nítida. Virgínia, já crescida, continua a conduzir a história, mas agora a escrita possui um olhar mais maduro: há dezenas de reflexões profundas, diálogos mais complexos, ideias mais sólidas, etc. Esta mudança de toada é realmente uma das marcas mais impactantes do livro porque é relativamente mais simples um escritor fazer isso com uma narrativa feita em primeira pessoa; mas quando essa mudança de postura parte do narrador onisciente, isso só pode ser factível com o talento diferenciado da sra. Lygia.
Apesar de rica, a família de Virgínia é extremamente perturbada, em função da mãe, Laura, mulher linda, mas que desenvolve problemas psicológicos. O início da obra, inclusive, se dá na casa de Daniel, médico que cuida dela e para onde Virgínia se muda para acompanhar a mãe. Ao visitar as irmãs, Virgínia sente-se deslocada, esquecida (a comparação com insetos ilustra muito bem isso). Endeusa a postura delas, como seres de conduta perfeita, e isso traz uma carga de abandono que toca o leitor. Esse olhar da protagonista também atinge Conrado e Letícia, dois irmãos vizinhos da casa de Natércio e que possuem grande relevância na narrativa, especialmente na segunda parte. No fim dessa primeira metade, uma série de fatalidades ocorrem e um segredo assustador é revelado. Virgínia, atingida por isso, resolve se mudar para um colégio interno, onde por lá passa muitos anos. A segunda parte começa justamente no momento em que Virgínia retorna ao lar. Percebe-se que o passar dos anos só intensificou o distanciamento entre ela e o seu círculo familiar.
É de certa forma lastimável que os grandes ensinamentos do livro passem por uma série de segredos dos personagens, que vão sendo desnudados um a um por Virgínia e que não podem ser aqui revelados. O que pode ser dito, no entanto, é que Ciranda de Pedra é uma obra cheia de conflitos, principalmente nos chamados duplos: o amor e a loucura, a fé e a descrença, a compaixão e a riqueza, o útil e o inútil... Suas páginas, principalmente na segunda metade da narrativa, reservam para si muita filosofia, reflexões de grande validade espiritual e uma eterna sensação de ludicidade, que, de uma forma ou de outra, trazem empatia ao leitor.
A escrita de Lygia Fagundes Telles traz algo, além da empatia, que poucos outros autores conseguem: Ciranda de Pedra é um livro que machuca (por certas histórias e fatos passados dos personagens principais), mas que afaga, simultaneamente. Sua narrativa alcança o interior do leitor, primeiro para perturbar, depois para curar. É um estilo que fere e alivia, sem ser forçado, sem detalhar situações mais íntimas, sem se ater a questões frívolas... As perturbações pontuais que causa são logo dirimidas por uma mensagem de afeto e de queda de paradigmas, que em sua maioria são sutilmente expostas nas entrelinhas. Carlos Drummond de Andrade corrobora isso em uma carta, que ele escreveu para a autora depois que leu os originais de Ciranda de Pedra dois anos antes de sua publicação. Essa carta, exposta na bela edição da Companhia das Letras, fala em "criação de pessoas vivas e não apenas personagens, (...) que ora nos prende, ora nos assusta".
De fato, Ciranda de Pedra é um livro humano. Tem-se uma narrativa que exala cheiros, gostos, percepções e uma infinidade de outras características que fazem a história ser algo íntimo e vivo. É impossível que o leitor ou leitora não se identifique com Virgínia, seja em suas manias e apreensões de criança ou no seu isolamento adulto. Ela passa uma imagem de estar em permanente estado de incompreensão: nem sempre teremos lugar na ciranda da vida e cabe a nós mesmos encontrarmos outras e melhores maneiras de passar pelo plano terreno da existência na qual estamos destinados.