Alexandre Kovacs / Mundo de K 04/03/2023
Hoffmann - Os elixires do Diabo
Editora Estação Liberdade - 368 Páginas - Tradução de Maria Aparecida Barbosa - Ilustração de capa: Natanael Longo de Oliveira - Lançamento: 2022.
Hoffmann (1776-1822) é considerado um precursor da literatura fantástica, tendo infuenciado outros importantes escritores ao longo do tempo, tais como como Edgar Allan Poe (1809-1849), Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Franz Kafka (1883-1924), para citar somente os principais. Hoffmann é dono de um estilo que vai muito além das limitações do romantismo alemão de sua época, revelando o que há de mais trágico e grotesco na natureza humana. A utilização do inconsciente como matéria-prima literária, antes da psicanálise de Freud (1856-1939), uma constante fragmentação da identidade do protagonista que leva ao tema do duplo, assim como um clima gótico, fantástico e detetivesco, são características do autor presentes nesta obra que a tornaram um clássico da literatura.
O romance é narrado em primeira pessoa pelo monge Medardo, que não resiste à tentação de experimentar o elixir do Diabo, uma relíquia do mosteiro. A partir de então, a sua personalidade muda e tem início um constante embate entre a vida espiritual e mundana. Medardo torna-se então um orador popular no mosteiro e na região, mas agindo por interesse próprio e vaidade; o prior Leonardus, percebendo a transformação, ordena que ele deixe o mosteiro e siga para uma importante missão em Roma. Ao longo dessa jornada, o monge irá cometer uma série de crimes, abandonando o hábito, sempre influenciado por seu duplo: "[...] a porta se abriu e uma figura obscura entrou. Reconheci para meu horror que era eu mesmo, vestido com o hábito de capuchinho, de barba e tonsura. A figura foi se aproximando mais e mais da minha cama, fiqui paralisado e cada som que tentava expressar se engasgava na rigidez que me acometera. Agora a figura se sentava na minha cama e sorria para mim com sarcasmo."
"Nesta caixinha encontra-se portanto um dos frascos com um elixir do Diabo e os documentos são tão autênticos e exatos, que não deixam dúvida de que a garrafinha foi realmente encontrada entre os pertences legados por Santo Antônio após sua morte. Inclusive posso lhe assegurar, caro irmão Medardo, que sempre quando toco o frasco, ou somente a caixinha onde ele está guardado, tenho experimentado um estremecimento secreto e inexplicável; sério, chego a imaginar estar inalando a essência de um perfume singular que me aturde e ao mesmo tempo excita meu espírito a ponto de me distrair da devoção. Nessas ocasiões, supero esse estado de ânimo ruim, que evidentemente procede de algum poder sobrenatural hostil, chego a pensar na influência de satanás, com orações persistentes. / A você, irmão Medardo, que ainda é jovem, que ainda pode contemplar em cores vibrantes e brilhantes tudo quanto a imaginação excitada por obra de forças ardilosas lhe sugere, que se assemelha a um guerreiro valente mas inexperiente – sim, forte, porém atrevido demais – ousando o impossível com autoconfiança, eu aconselho a jamais abrir a caixinha ou pelo menos esperar alguns anos para fazê-lo. A fim de não se deixar tentar pela curiosidade, mantenha-a fora do alcance da vista." (pp. 47-8)
A trama é bastante complexa, envolvendo vários personagens e reviravoltas, mas um elemento que conduz toda a história é o amor de Medardo por uma jovem princesa, Aurélia, considerada uma santa e salvadora, mas também origem de seus piores crimes, inclusive assassinatos. A ambiguidade dos personagens é bem destacada na introdução de Sabrina Sedlmayer: "O Diabo surge então como um outro que desorienta sua vida espiritual, obsidia sua mente insinuando horror e desaventurança ao iniciá-lo em mistérios. O demônio dá o pontapé às metamorfoses, é o dispositivo que lança o capuchinho ao mundo, que o faz errar na luta incessante entre confiança e conflito, lucidez e loucura, ascensão e decesso, alegria e tristeza, amor e morte."
"Tive enfim a ideia de orarmos juntos, pois em oração o fogo do fervor se faz mais ardente, desperta e faz emergir instintos recônditos, e esses se estendem como se sobre vagas bramantes, semelhantes a tentáculos de pólipos, a fim de silenciar o inominável anelo que cinde a alma. Ao terreno, fingindo-se celestial, se torna possível afrontar o ânimo exaltado com a promessa de se cumprir cá na Terra infinitamente o que o exalta; êxtases sagrados e divinos se misturam à aspiração que se lança rumo aos céus, para além das esferas, e a rompem, desvelando encantos jamais imaginados de desejo terreno. / Ela devia repetir depois de mim as preces que eu próprio compusera. Assim acreditei lograr vantagens a favor de minhas pérfidas intenções. E, assim foi, com efeito! / Pois ajoelhada ao meu lado, com os olhos voltados ao céu, respondendo às minhas rezas, se enrubesciam suas faces e seu seio arfava. Nesse instante, levado pelo fervor da oração, tomei suas mãos e as pressionei contra meu coração. Estava tão próximo dela que podia sentir o calor que emanava seu corpo, seus cabelos soltos roçavam meus ombros. Fiquei fora de mim, possuído por um desejo carnal frenético, e a abracei com paixão selvagem, beijei-lhe a boca, o peito. [...]" (pp. 96-7)
É sempre importante lermos e relermos os clássicos, principalmente nesta bem-cuidada edição, contando com notas explicativas que ajudam a entender o contexto histórico, assim como prefácio à edição brasileira da tradutora Maria Aparecida Barbosa, professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina, mestrado e doutorado pela mesma instituição; e introdução de Sabrina Sedlmayer, pesquisadora e professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Implacável foi a penitência que o prior me infligiu. Expulso da igreja e banido como leproso das reuniões comunitárias, jazia na cripta dos mortos, sustentava minha sobrevivência a custa de ervas insípidas fervidas em água, açoitando-me, penitenciando-me com instrumentos de martírio inventados por uma crueldade cheia de requintes e não elevando a voz, senão para acusar a mim mesmo, para suplicar em oração de arrependimento a salvação do fogo do Inferno, cujas chamas ardentes eu já sentia a consumir meu coração. Mas quando o sangue escorria das cem feridas, quando a dor me devorava queimando feito cem picadas de escorpiões peçonhentos e, enfim, a natureza sucumbia até o sono envolvê-la com seus braços, protegendo-a como criança impotente, então ressurgiam as perniciosas imagens do pesadelo e elas me levavam a recomeçar os tormentos mortais." (pp. 283-4)
Sobre o autor: Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann nasceu em Königsberg, na Prússia Oriental, em 1776. Desenvolveu carreira como jurista, atuando em tribunais de apelação em Berlim e em Varsóvia. Mas desde cedo já demonstrava inclinação para as artes, como pintura, teatro e, sobretudo, música clássica (era admirador de Mozart, de quem adotou o nome Amadeus em substituição a Wilhelm), passando a dedicar-se a tais paixões de modo integral a partir de 1808. Foi homenageado por Jacques Offenbach com a ópera Os contos de Hoffmann, baseado em três histórias do autor. De saúde permanentemente frágil, agravada pelo abuso de álcool, ele seguiu produzindo até o fim da vida, inclusive ditando a um escriba quando sua condição motora já estava comprometida por uma paralisia progressiva que se mostraria fatal. Faleceu de forma precoce em 25 de junho de 1822, aos quarenta e seis anos de idade. Pela Editora Estação Liberdade, tem publicados o romance Reflexões do gato Murr (2013) e a coletânea O reflexo perdido e outros contos insensatos (2017).