Ana Sá 29/05/2024
As linguista pira!
"Moçambique com z de zarolho" (2018), de Manuel Mutimucuio é um livro leve e irônico sobre temas complexos: de forma abrupta, o governo moçambicano decide substituir o português pelo inglês como língua oficial. Os efeitos desse acontecimento inesperado - que tem como justificativa uma maior integração do país à economia global - são apresentados a partir da trajetória de duas personagens: o jovem Hohlo, que se muda da zona rural para a capital a fim de estudar português, e o deputado Djassi Costa, que contrata o rapaz como seu empregado doméstico. Nessa dupla perspectiva, a leitora tem acesso aos embates entre os interesses públicos e privados da nova medida, assim como a um conflito de classes que se torna ainda mais evidente com essa mudança.
Para qualquer pessoa que já leu autoras da África de Língua (Oficial) Portuguesa, é já conhecida a coexistência do português com diversas línguas locais. Mas nesta obra, em particular, a pluralidade linguística não é um elemento subjacente, mas a protagonista da história. E talvez por isso eu tenha gostado tanto dela: eu sentia falta de alguma narrativa ficcional que explorasse o lugar minoritário/marginal ocupado pela língua portuguesa em muitos países africanos. Pois Manuel Mutimucuio faz isso com uma acidez na medida!
Djassi é inicialmente contrário à nova lei, no entanto, usando de suas palavras, "de que serve a política se um indivíduo não pode ajudar a própria família?". Que implicações a oficialização do inglês teria no futuro de seus filhos?
Hohlo, cursando o que no Brasil chamamos de EJA - Educação de Jovens e Adultos, fala "changana puro de Gaza" de forma brilhante, mas em Maputo não passa de um empregado doméstico se não souber a língua do patrão. Frustrado depois de tantos esforços para aprender o idioma que era até então oficial no país, ele não deixa de se perguntar inúmeras vezes: "mas o que será feito da professora de português?".
Quando falamos de contextos (des)coloniais, a questão da língua é não só uma questão identitária, mas política. Durante a colonização, a imposição do idioma do colonizador é uma das tantas violências de dominação características desse processo. Já no pós-independência, essa mesma língua, então estrangeira, costuma se tornar um instrumento inevitável de luta. Na história da educação escolar indígena brasileira, por exemplo, a conquista de uma educação bilingue pelos povos originários não refletiu apenas o desejo de preservar suas próprias línguas, mas também a necessidade de dominar o português enquanto ferramenta da garantia de direitos. Pois Hohlo, ao tentar dominar um idioma que, em seu país, é ainda restrito a uma elite econômica, parece estar preso numa amarra similar, bastante ilustrativa da complexidade do problema: se não posso sem a língua do colonizador, melhor com ela? E ainda: entre o colonialismo do português e o neocolonialismo do inglês, pra onde correr?
Eu não considero este um romance profundo e até diria que a história parece terminar antes da hora, o que talvez se explique, em partes, pelo (ótimo) tom satírico que o autor escolhe adotar. Em linhas gerais, o livro foi para mim um passatempo sofisticado, por me fazer refletir sem cansar a vista, sabe?
O capítulo "Parlamento" dá um show à parte ao expor o embasamento dos votos prós e contras à oficialização do inglês como língua nacional, extrapolando e muito um suposto debate linguístico local. O destino que a nova lei tentar impor a Hohlo, que, nesse novo contexto anglófono, se verá empurrado ao ensino profissionalizante, pode servir de caricatura da artificialidade das reformas educacionais neoliberais que se espalham hoje por diferentes países. Trata-se, afinal, de um livro que fala de tantos outros Moçambiques.
Dados do Instituto Nacional de Estatística de Moçambique de 2019, época em que o livro de Mutimucuio foi publicado, apontavam que o português correspondia à língua materna/de família de um pouco menos de 20% da população. Portanto, pode soar globalmente bonita a ideia de que o nosso idioma seria "um dos mais falados no mundo", mas é tão mais interessante entender a complexidade dos processos que desmistificam parte dessa bobagem. "Moçambique com z de zarolho" (que título bom, né?) é justamente um bom convite para essa compreensão.