Andreia Santana 06/03/2024
Duas leituras armoriais
O Movimento Armorial foi criado pelo escritor e dramaturgo Ariano Suassuna em 1970 para valorizar a autêntica arte brasileira com base nas raízes populares, abrindo espaço para a apreciação da cultura do Nordeste com seu teatro de rua, mamulengos, cheganças, cordéis e outras expressões típicas sertanejas.
Lisbela e o prisioneiro, de Osman Lins, e O santo e a porca, do próprio Suassuna, embora escritos antes do movimento, em 1964 e 1957, respectivamente, representam uma 'literatura armorial' ou com forte inspiração nesse caldo cultural diverso.
Ambos foram concebidos para o teatro e encenados dezenas de vezes. Também adaptados para o cinema e a televisão, sempre com grande sucesso, muito por conta do carisma das personagens e da força dessas histórias criadas há décadas, mas atemporais.
Lisbela e o prisioneiro e O Santo e a porca podem ser também definidos como dramas de amor. Embora o centro da trama da história de Suassuna seja o avarento Euricão Engole Cobra e sua porca de madeira, onde ele guarda uma suposta fortuna, é o casamento de Margarida, filha de Engole Cobra, com Dodó, filho do rico coronel Eudoro, que ajuda a tecer a narrativa. Já Lisbela e seu amado Leléu são o ponto central da história de Osman Lins. Todos os outros personagens giram em torno do casal.
Lisbela e Margarida são típicas mocinhas do interior de antigamente, casadoiras, belas, inocentes, mas nem tanto. Pois, enquanto Lisbela quer "queimar sua vida em um fogo muito forte" por amor ao artista errante Leléu, seguindo-o pelas estradas de sua existência torta; Margarida não hesita em aderir a uma trama engendrada por Caroba, uma das empregadas de seu pai, para que ela consiga, por fim, realizar o desejo de casar com Dodó. De quebra, Caroba ainda quer garantir o próprio casamento com Pinhão, empregado do coronel, e de dona Benona, irmã de Euricão, com Eudoro, de quem foi noiva no passado, antes de uma rusga botar fim no compromisso.
Para atrapalhar o enlace dos pombinhos nas duas histórias, aparecem Frederico Evandro, assassino de aluguel que tem contas a acertar com Leléu; e o coronel Eudoro, pai de Dodó, que deseja desposar Margarida por não saber que o filho ama a moça.
Esses dois textos que despertam riso pelo absurdo e pelo burlesco de algumas situações, futuca nas entranhas da nossa nordestinidade e brasilidade, remontando a um período histórico onde pistoleiros brabos conviviam ao lado de homens santos e mulheres "sonhosas e de colo macio".
De certa forma, a 'literatura armorial' é shakespeariana, "epopeica e embandeirada", como diria Pedro Diniz Quaderna, protagonista de O Romance d'A Pedra do Reino, a obra-prima de Suassuna, na minha modesta opinião, e uma leitura que requer fôlego e mente aberta do leitor, como já escrevi aqui no Skoob, em resenha de 2012.
A beleza dessas tramas está também na representação de tipos característicos como o delegado e a força policial atrapalhada e simplória das cidadezinhas empoeiradas e perdidas do sertão. Em Lisbela, a delegacia é o principal cenário da história, com seus cabos, sargentos, soldados rasos e carcereiros que gravitam em torno dos protagonistas ao mesmo tempo que vivem seus pequenos dramas pessoais.
Mas, são os empregados ou outros personagens subalternos e mais espertos que seus patrões que representam o imaginário do sertanejo 'malasartiano', em referência à figura tradicional dos contos populares ibéricos, Pedro Malasartes, o burlão cheio de astúcia que aparece em histórias desde o século XII.
A cultura do nordeste tem traços de muitas culturas dos povos formadores do Brasil e a figura de Malasartes é recriada com maestria em diversas histórias nordestinas inspiradas nas tradições ibéricas e temperadas com as culturas africana e indígena.
Para sobreviver onde a terra é esturricada como no sertão nordestino, é preciso engenho. Caroba, em O santo e a porca, e Citonho, em Lisbela, mais do que alívios cômicos desses espetáculos, são como Malasartes, cheios de expedientes para enganar os figurões, quase sem querer, mas querendo, e sem perder o carisma, o que garante a cumplicidade da plateia (ou, no caso da publicação dessas peças, do leitor).
As duas histórias tão simples, divertidas e irônicas ao desfiar os preconceitos do sertão brabo dos tempos idos, são também ingênuas no seu desfile de tipos quase caricatos, mas que quem nasceu no Nordeste ou tem familiares dessa região, vai reconhecer com ternura.
A ideia, nesses textos, não é estereotipar, mas representar uma cultura única, peculiar e multifacetada, forjada na lida e no lúdico...
Fichas Técnicas:
Lisbela e o prisioneiro
Autor: Osman Lins
Editora Tusquets, 2023
128 páginas
R$ 40,56 (livro físico, Amazon) ou para assinantes do Leer+ no aplicativo Skeelo
O santo e a porca
Autor: Ariano Suassuna
Editora Nova Fronteira, 2000
224 páginas
R$ 50,29 (livro físico, Amazon) ou para assinantes do Leer+ no app Skeelo
*O Kindle Unlimited também tem para empréstimo para assinantes do serviço
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*Livros lidos para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. Lisbela e o prisioneiro e O santo e a porca são os livros 20 e 21, respectivamente, do desafio.
Resenha única e comparativa sobre Lisbela e o prisioneiro e O santo e a porca
site: https://mardehistorias.wordpress.com/