Vitor Hugo 21/03/2024
DA CARICATURA À CARACTERIZAÇÃO
Com esta obra, o professor e escritor João Cezar de Castro Rocha dá início a uma trilogia que se propõe ao árduo trabalho de entender e estruturar o bolsonarismo, evitando a simples (e perigosa) derrisão; daí o título, retirado do texto mesmo do livro, desta singela análise.
Afirma o autor que o bolsonarismo transportou a lógica das redes sociais, e do mundo digital como um todo, para o campo da disputa política, o que levou, em sua expressão, "à despolitização da pólis", ao esvaziamento da esfera pública do debate.
Já presente no subtítulo do livro, o autor aborda como, da guerra cultural, o bolsonarismo passou a funcionar como seita religiosa, tudo descambando em terrorismo doméstico, como bem comprovam os lamentáveis acontecimentos de 8 de janeiro de 2023.
A dita guerra cultural, no caso, age a partir de um falso moralismo permeando uma pauta de costumes, usando como instrumentos as "fake news" e as teorias conspiratórias. Isso se dá em um ambiente específico, cunhado pelo autor como "midiosfera extremista", um sistema fechado e paranoicamente coerente em si mesmo, composto de correntes de WhatsApp, canais de YouTube, redes sociais, aplicativos específicos e "mídia amiga externa", como, por exemplo, o grupo Jovem Pan.
Na dita midiosfera extremista opera a retórica do ódio, que objetiva, mesmo que de forma simbólica, a destruição do outro. Isso tudo, segundo o escritor, leva os componentes da seita a um estado de dissonância cognitiva coletiva, estado psicológico no qual a pessoa tem de conciliar um descompasso entre crença e comportamento, geralmente aprofundando o distanciamento de uma realidade fática objetiva.
A par desta análise mais, digamos, subjetiva do fenômeno, o autor aborda, para além do caráter internacional do bolsonarismo como parte de um movimento global da extrema direita, as notas nacionais do movimento.
Afirma o autor, então, que o bolsonarismo se funda em três elementos básicos: a) transposição da autoritária Doutrina de Segurança Nacional para tempos democráticos, objetivando a eliminação do "inimigo"; b) tomada de base teórica a partir da obra "Orvil", livro escrito nos anos 1980 pelo ministro do Exército do governo Sarney, a fim de fazer contraponto ao livro "Brasil: nunca mais", sendo que daquele se depreende que o "espectro comunista", a partir de 1974, abandonou a tentativa de tomar o poder por meio das armas, passando a agir de forma insidiosa no campo cultural, aparelhando a arte e o meio universitário; c) "sistema de crenças" do "guru" Olavo de Carvalho, difundindo-se daí o que o autor chamou de "analfabetismo ideológico".
Tem-se aí, portanto, uma visão de mundo bélica, uma estrutura de pensamento conspiratória e uma linguagem que se notabiliza pela retórica do ódio, cuja consequência só poderia ser o que o autor chamou de "arquitetura da destruição", ou seja, um (então) governo que buscou desmantelar tudo o que estava ligado aos campos cultural, educacional, acadêmico, ambiental etc.
O "ovo da serpente", segundo o autor, encontrar-se-ia ainda nos movimentos de rua de 2013. E o fim? Se levado adiante de forma acabada, tudo descambaria em um estado autoritário de matiz fundamentalista religioso. Mas há esperança, segundo o escritor, e tudo isso inicia com a ética do diálogo, verdadeira antítese à retórica do ódio.
O livro é composto de uma longa introdução, na qual a essência da estruturação do pensamento do autor já está presente; seguem-se artigos e entrevistas do autor ao longo do tempo, os quais ora repetem a temática, ora aprofundam os conceitos.
Embora, pela estruturação, o livro possa ser um pouco repetitivo, o fato de o autor ser professor de literatura, usando várias referências deste meio em sua escrita, torna a obra bastante agradável, como é, aliás, ouvir o autor, o que é possível em vários canais do YouTube aos quais o professor João Cezar concedeu entrevistas.