Vinícius 16/05/2024
Na arte contemporânea, uma pergunta recorrente é: como abordar temas sensíveis e pesados sem, no entanto, corroborar para a degradação e desumanização dos(as) que são alvo da violência discutida nesses temas? A resposta para essa pergunta não é fácil, mas após ler "Bordado em Ponto Corrente", posso dizer que Rute Ferreira alcançou esse delicado equilíbrio, construindo uma obra visceral e agridoce de uma maneira paradoxalmente sensível e poética.
Unindo o realismo fantástico latino-americano à mitologia grega, Rute nos transporta para um interior brasileiro que parece perdido no tempo e existir além desse tempo, ainda que tenhamos uma noção vaga de quando a história se passa. O nome desse vilarejo, Santana da Solidão, é mais do que propício, pois vemos personagens femininas que são forçadas a recorrer à solitude e ao silenciamento para sobreviverem num mundo que as oprime e cala.
Parece pesado, e é. No entanto, Rute tem uma prosa de uma força e sensibilidade tamanhas, de modo que quando a violência aparece (em suas muitas formas), nunca é gratuita e nunca é construída para fortalecer o ponto de vista dos opressores em detrimento das oprimidas. Ela dá voz a essas mulheres, constrói-as como seres multidimensionais e imprime um sutil aspecto fantástico na obra que traça comentários pungentes sem nunca apelar pro proselitismo. Há também um mistério rondando a narrativa, que é tão bem costurado (ou bordado?) às histórias aqui contadas que me deixou sedento por respostas, e devo dizer que a resposta para esse mistério me deixou de queixo caído.
Alternando entre o passado e o presente num controle espetacular sobre sua narrativa, Rute traz para nós em "Bordado em Ponto Corrente" uma daquelas histórias que nos deixam uma marca difícil de ser apagada. Ela é capaz de encontrar beleza mesmo em meio ao mais sórdido, impactando-nos com a escolha de suas palavras, a fluidez, sensibilidade e poesia contidas em sua prosa. E ainda assim sinto que os elogios são poucos a esse livro que já figura entre as melhores obras nacionais que li na minha vida.