Ana Sá 17/05/2024
Cada época tem o feminismo de que precisa
Nísia Floresta, educadora e escritora nascida no Rio Grande do Norte em 1810, é um daqueles nomes fortes, mas não tão devidamente conhecidos, da história do feminismo brasileiro. Militante da educação para as mulheres e dos direitos de outros grupos subalternizados, no breve "Conselhos à minha filha" (1842) ela mistura a exposição de seus ideais públicos ao desvelamento de seu papel privado de mãe. Hoje, às leitoras do século XXI, tem-se um texto, "fruto da época", que chama a atenção por parecer, a nós, conservador e libertário simultaneamente.
Já nas primeiras linhas, ao alertar a filha Lívia sobre o teor das páginas que está prestes a lhe dar de presente de aniversário, Nísia se mostra disposta a romper paradigmas: contrariando as convenções da época, a mãe avisa que substituirá a "roupa linda" que se costuma oferecer às meninas de 12 anos por um pequeno livro de conselhos (parece pouco, mas imagina o tamanho desse "pouco" em 1842?). Enquanto, nas palavras da autora, a vestimenta se trataria de um “enfeite passageiro” que Nísia estaria tentando ensinar a filha a desprezar, o livro seria, por sua vez, um presente realmente “digno de si”.
No desenvolvimento do texto, é fácil notar passagens ilustrativas do pioneirismo e da postura revolucionária de Nísia no que diz respeito ao acesso feminino à educação formal e científica. À filha Lívia, ela chega a aconselhar explicitamente seu afastamento de homens que tentam oprimir "aquelas cujos pais mais justos facilitaram-lhes os caminhos das ciências", recomendando um tipo de companheiro que, "admirando nossos talentos", "não receia que ultrapassemos os limites impostos a nós". Por outro lado, em meio a tais argumentos, o contundente cristianismo da educadora traz a seus conselhos maternais certas sugestões que, hoje, poderiam compor o manual da mulher "bela, recatada e do lar": "para ser boa, a vivacidade em uma menina deve ser moderada, sendo necessário haver modéstia em todos as suas ações".
Aliás, para quem fez forçosamente catequese na infância, algumas páginas de "Conselhos à minha filha" podem conduzir àquela sensação boa de sonolência de um domingo à tarde. Sim, sim, confesso que foi uma leitura até um pouco tediosa, mas assumo também que seu encanto está justamente nessas ambivalências que retratam o que era ser, afinal, uma mulher dentro e fora de sua época no século XIX. Talvez, além disso, leituras como esta nos recordem justamente de que, ainda hoje, o feminismo não é (ou não deveria ser) uma cartilha cheia de duplas dicotômicas que determinam alguns comportamentos e posturas em detrimento de outros. Ser "revolucionária" é sempre complexo e contextual.
Cada época tem o feminismo de que necessita, e o feminismo de Nísia foi daquele tempo em que precisávamos dos primeiros degraus, entre eles o do acesso irrestrito à mesma educação ofertada aos homens. Ao que parece, mais pessoas, para além de sua filha, puderem gozar dos benefícios de seus conselhos!
Obs.: Esta edição tem aquele famoso aviso de "linguagem adaptada pros idas atuais", por isso não teci comentários sobre o estilo e a linguagem. Não sei como e em que medida se deu a tal "adaptação". Num futuro, quero ver se leio o original para tirar a prova.