Juju 23/10/2023
Verdades Floridas
Em 2 de maio de 1981, o som proveniente de uma troca de tiros suspeita irrompeu pela noite advindo de uma residência luxuosa mais conhecida como Casa Mercer. O cenário para esse crime foi a cidade de Savannah na Geórgia. Um local famoso por suas belas casas, praças opulentas e jardins suntuosos, mais ainda pelos moradores acolhedores ainda que bastante peculiares e que abominam a simples hipótese de progresso ou expansão. Não obstante, a cidade parecia sempre à beira de um colapso decadente, mesmo que se dedicasse com sucesso a manter sua imagem bucolicamente adorável e perfeitamente imaculada. Dali em diante, um forasteiro de Nova York se mistura à miscelânea de variedades em Savannah, conhecendo algumas das figuras mais importantes e estranhamente cativantes que lhe mostram tudo o que se pode saber sobre o estilo de vida daquelas pessoas, tudo isso em meio ao julgamento que se estenderia por longos 8 anos a fim de determinar uma resposta para o mal que lhes afligia: seria Jim Williams culpado ou inocente pelo assassinato de Danny Hansford?
Publicado pela primeira vez em 1994, Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal foi um sucesso estrondoso que permaneceu durante 216 semanas seguidas na lista de best-sellers do New York Times. O livro até mesmo ganhou um prêmio e em 1995 concorreu ao Pulitzer na categoria não-ficção. O autor é John Berendt, graduado em Letras pela Universidade de Harvard e foi redator de veículos de comunicação de prestígio como New York e Esquire.
Sobre o livro em si, a história, as pessoas, a cidade, o crime, o julgamento: é tudo real. A única parte fictícia é o narrador que apesar de não possuir um nome, sabemos se tratar do autor do livro (John Berendt). E eu consigo compreender os motivos de ele ter sentido a necessidade de criar e inserir um personagem ali para poder narrar toda essa história. São muitas intrigas, fofocas, boatos e particularidades que poderiam sim ser narrados a partir da forma tradicional (da maneira que vemos em livros de true crime: imparcialmente e com linguagem neutra), no entanto, creio que a experiência seria deveras enfadonha caso ele houvesse elegido essa opção. Através dos diálogos e das cenas elaboradas, fica mais fácil compreender a realidade de Savannah, a experiência é mais imersiva. Assim, até parece que somos igualmente transportados para dentro do livro e por consequência para dentro de Savannah, somos apenas mais um forasteiro desbravando e conhecendo aquele lugar tão belo e particular repleto de moradores excêntricos e falastrões que possuem um bocado de segredos sórdidos para ocultar. Contudo, vale novamente ressaltar: esse não é um livro de crime fiction (crime ficcional), os eventos são baseados em relatos, informações, entrevistas e todo um material de pesquisa vasto e completamente verídico. Os fatos narrados pelo personagem principal dessa obra seguem uma linha do tempo precisa e apurada.
O que eu achei? Pessoalmente, foi uma boa leitura, só acho que o autor não precisava de 400 páginas para contar essa história. O caso foi um homícidio bastante simples, apesar das reviravoltas que culminaram em quatro julgamentos diferentes e teve um final esperado, porém surpreendentemente intragável. Eu diria até poeticamente cruel, o que não ironicamente combina perfeitamente com os moradores e a cidade de Savannah. Existem alguns elementos legais de misticismo e no geral eu penso que o autor foi bem competente em se ater a todos os detalhes - talvez até demais - mais relevantes. A leitura ainda é permeada por lindos cenários floridos, artísticos, musicais e resgata um saudosismo tremendo de uma época que já se foi.
Agora entramos em um outro ponto que eu preciso ressaltar na minha resenha. True Crime e ficção são uma boa combinação? Não é uma fusão completamente ruim do ponto de vista literário, e com isso eu quero dizer que eles possuem elementos que podem funcionar de uma forma bastante instigante e captar a atenção do leitor. Mas por outro ângulo, quando você mistura fatos reais com outros elementos fictícios, por si só isso pode gerar uma grande confusão no leitor que não vai mais saber diferenciar, separar um do outro. E a partir daí eu acho perigoso, porque quando estamos falando de um crime real existe todo um espectro mais abrangente que entra nessa equação bem complexa. O autor pode imputar sentimentos aonde eles não cabem ou existem, pode macular ou alterar fatos a partir de suas opiniões pessoais, induzir conclusões ao leitor, tomar um partido e assim por diante. Não foi muito o caso desse livro em específico, eu ainda acho que o autor conseguiu manter dentro do possível a neutralidade, mas na maioria dos casos não é bem assim. E tal atitude sugere grande irresponsabilidade e às vezes até falta de respeito com as verdadeiras vítimas e/ou pessoas envolvidas. É necessário ter muita cautela, pois as repercussões podem assumir toda uma magnitude extremamente negativa. Tal qual no caso da minissérie Dahmer, adaptada a partir de fatos/crimes reais, indivíduos passaram a defender e até glorificar o assassino. No que diz respeito à essa obra, por exemplo, eu ouvi pessoas comentando que era uma história inventada. E não é. Toda a dor daquelas pessoas foi real e isso precisa ser reconhecido e validado. Fica então a reflexão.