Krishnamurti 27/11/2023
A face mais doce do azar...
[ou da sorte mesmo...]
Nesses anos em que tenho praticado a crítica literária, jamais imaginei que uma coisa assim pudesse me acontecer. Peço desculpas portanto, aos leitores que me acompanham, pelo tom pessoal do texto. Não acredito em sorte ou azar... Acredito em atitude... Em quem luta pelos seus desejos e faz acontecer. Existem sim, parece-me, felizes e infelizes ‘coincidências’, uma das quais muito feliz, exponho, celebrando a sorte com um brinde especial e, ao azar, para quem ainda não leu “A face mais doce do azar”.
18 de novembro último acordei tarde. Tinha fritado a cuca até altas horas com projetos de planejamento de obras. Fiz rápido café da manhã, sentei-me à mesa, não sem antes colocar o celular à mão para saber do retorno do e-mail que havia enviado com o tal planejamento. Nada. Levei o café quente aos lábios e na outra mão, o pão com queijo. O celular tocou anunciando chamada telefônica. Olhei para o display e vi tratar-se de chamada de telemarketing. Não podia recusar. Mãos ocupadas. Tocou por longo tempo e parou. Logo a seguir nova chamada estridente, número desconhecido. Silêncio após três ou quatro toques. Seguiu-se nova chamada irritante que não pude identificar a origem porque, irritadíssimo, depus o pão no prato, e sem olhar ao certo o que estava a fazer, toquei no display de maneira desordenada a fim de fazer cessar aquele som antipático. E eis que; entre o abre e fecha de sites que meu dedo provocou, fui parar em uma live do Instagram. Lá estava ela falando sozinha. Ao menos foi o que o registro de presença da live acusava naquele momento. Contava sobre o processo da edição de um livro que tinha acabado de lançar. Como é tema que sempre me interessa saber, acalmei a irritação, e fiquei ouvindo-a por alguns minutos, ao cabo dos quais ela parou, olhou o controle de acessos da live e disse. “Gente! Acho que ainda não deu tempo de as pessoas entrarem aqui. Quem está ouvindo?” – olhou para a tela, soletrou meu nome quilométrico e disse muito compenetrada: “Que bom que você está aí! então eu falo pra você!” Pois; foi assim que conheci a senhora Vera Saad, autora do romance “A face mais doce do azar”.
Dividida em três partes a obra nos apresenta a história de Dubianca, uma garota que teve sua vida atravessada pelos desequilíbrios de um país como o Brasil que insiste, e miseravelmente perdura, numa injustiça social tremenda desde que era mero armazém de Portugal. Muito bem; a adorável Dubianca (mérito da autora em dar vida a personagem tão doce e inteligente), vive sua pré-adolescência morando com os pais na casa de um tio (irmão do pai). O pai e o tio são proprietários de uma loja de materiais de construção. A residência conjunta das duas famílias é obra da fé que o pai de Dubianca alimentava de pagar apartamento próprio. Da esperança – Deus que palavra mais desesperadora neste país! – de que, com muita persistência e trabalho duro, poderia afinal ascender socialmente, e proporcionar à pequena família melhores condições de vida. Anos 90 do século passado. Só quem viveu aquele tempo pode fazer ideia do caos que foi. Uma inflação galopante de 1.900%. Até que veio o tal Plano Collor. Conjunto de medidas econômicas adotadas pelo governo de Fernando Collor de Mello (1990 – 1992). Fazia parte da cachorrada a que se deu o nome de “plano”, o confisco das poupanças do povo, e uma série de medidas que afetaram a quem? Aos “Zé ninguém” do país, ou seja, a população brasileira. Quem era rico, continuou rico e quem era pobre ficou ainda mais fodido! Como diria um papagaio pornográfico que habitava as proximidades da residência dos Limeira. O coitado do Antônio, pai da protagonista, perde-se, fica sem chão, se desequilibra de tal forma que acaba enlouquecendo! Como dar conta de pagar o apartamento, como manter a loja? como prover as necessidades mais elementares da família? como?
Separemos as coisas. O relatado no livro não é mera ficcionalização de completa distopia. É espelho fiel do que aconteceu naqueles anos. De fato, houve vários casos de suicídio na ocasião. O confisco do dinheiro da população tornou o país mais justo? Alçou a nação a patamares de país desenvolvido? Resolveu o problema da inflação galopante? Nada. Cachorrada por cima de cachorrada.
Em “A face mais doce do azar”, Vera Saad aborda duas vertentes da História. A que relembra o passado sob a ótica do sofrimento imposto à uma família classe média da São Paulo à época do despautério completo que foi o governo Collor, portanto história pública de toda a gente, ou social – como queiram – que se entrelaça à história pessoal de vida de Dubianca, protagonista da ficção, que por sua vez, se embaraça dolorosamente, com personagens que viveram e sofreram na pele a ditatura militar que ocupou o governo do Brasil durante longos e tenebrosos 21 anos (1964-1985). Recuemos no tempo por algumas linhas. O amalucado Jânio Quadros assumiu a presidência da República em 1961, e nesse mesmo ano renunciou ao cargo, dando lugar à posse do vice João Goulart. A ditadura foi implantada. A princípio, com o objetivo de evitar o avanço das organizações populares do Governo de Goulart, acusado de comunista. 21 anos de crimes e toda sorte e desmandos. Veio a abertura afinal, Tancredo Neves eleito presidente, morreu na véspera de assumir a presidência, veja-se o ‘azar’ nosso que vem lá dos tempos da ditadura Vargas – mas isto é ‘outra história’ –, e fomos de José Sarney. Pronto. A coisa começou a degringolar novamente, até que apareceu Fernando Collor, o caçador de Marajás, um detonador de maluquices à torto e à direito que impactaram na vida de milhões de brasileiros e não resolveram absolutamente nada. Escândalos, corrupções, acusações, divisões, dissenções, o diabo! O Brasil, sempre inclinado aos voos atrapalhados das “baratas voadoras”. Sem potência, sem direção, sem rumo.
Uma última e importante observação. A obra se abre com uma epígrafe do escritor argentino Jorge Luis Borges. Poema em que faz referência ao deus Jano. Como sabemos, Jano é o deus romano das mudanças e transições. Tem poder sobre todos os começos. Em seu poder estão os inícios, em relação às mudanças (recomeços). A sua dupla face simboliza passado e futuro. Resumidamente. É deus dos inícios, das decisões e das escolhas. Se tivermos o cuidado de analisar mais detidamente o contexto da obra da senhora Vera Saad, e dentro de uma perspectiva temporal alargada, facilmente chegaremos à mesma conclusão do filósofo Antonio Gramsci: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e – nesse claro-escuro, irrompem os monstros.” Vivi o sofrimento imposto pelo desgoverno Collor de Mello, que à época, levou-me ao time de milhões de desempregados. Sim; Fernando Collor de Mello. Esse mesmo que, após renúncia e escândalos de toda sorte, foi eleito senador da república. Prova inconteste que nosso povo não tem a menor consciência histórica.
A senhora Vera Saad serviu-se de um passado que tangenciou a formação de sua personalidade. À época uma pré-adolescente, para compreender o que se passa hoje. – e para os que não intuíram ainda do que venho falando até aqui, ninguém se persuada de que em breve não tenhamos relatos dolorosamente tristes sobre a criminosa falta de vacinas e oxigênio nos hospitais nos anos da pandemia da Covid que ceifou milhares de vidas, e de quem foi a culpa. Já se disse e se escreveu: aqueles que não aprendem com o passado estão condenados a repeti-lo. Não conhecer o passado, condena presente e futuro. O livro nos mostra, e nos ensina, que a protagonista Dubianca assumiu a história de sua vida, dentro de uma imensa revolta existencial. O que mais se poderia esperar de uma ambiência de violações de toda sorte (aí inclusive, estupro físico na sua condição de mulher), como até hoje ocorre no Brasil grotesco que vamos construindo? Nela viu, contudo, a realização de si mesma, certa de que, assumir o controle da própria biografia significa a clareza sobre quem se é, e de quem se quer ser. Jano o deus das escolhas e das retomadas humanas. Não nos esqueçamos. Está em nossas mãos. Acatar ensinamentos da história significa buscar liberdade. A História é a base dessa liberdade.
Livro: “A face mais doce do azar” – Romance Vera Saad, Editora Claraboia, São Paulo/SP, 2023, 136p. ISBN: 978-65-80162-16-1 Links para compra e pronto envio: https://www.lojadaclara.com.br/produto/a-face-mais-doce-do-azar-vera-saad
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