spoiler visualizarMatheus.Correa 16/07/2024
É sobre o que realmente a gente deixou de ser
Uma senhorinha sozinha, mesmo tendo filhos e netos. Se vê triste e pensativa observando mais um natal. O começo desse livro é tão revelador. O medo e a insegurança que vem com a idade é algo muito mais presente do que a sabedoria, os receios e o toque da saudade.
Ela foi para a sua chaminé à espera de uma companhia e a encontrou. Papai Noel, e, quem diria que seria um encontro repleto de tanta coisa reveladora, sobre ambos.
"Já instalados, eu lhe disse: ? Nunca em serviço, está bem, mas só um chá? ? Não, não, não, sobretudo nada de chá! Nada de chá! ? Mas por que não um chá, Papai Noel? ? Dá vontade de fazer pipi, o chá. E a senhora me vê, imprensado numa chaminé, tendo além disso vontade de? Comecei a rir bem alto. Ele ficou todo vermelho. ? Está achando graça? Achando graça? Taí, eu gostaria de vê-la nessa situação! Imprensada na chaminé com uma vontade de? que lhe pega pelo pescoço! Ri às gargalhadas me imaginando também imprensada na chaminé com vontade de? Papai Noel recomeçou: ? Vá, vá, ria, hoje todo mundo caçoa de mim. Todo mundo se esbalda quando fala do Papai Noel." - Ambos estão cansados, a vida não é fácil, e por muitas vezes um conflito entre o cansativo e o esgotante. E nesse processo vem as despedidas:
? Sim, e é como se tivesse sido ontem. Ele também sabia fazer tudo, assim como a sua Mamãe Noel. Era ele que estava no leme, e desde que partiu estou como um barco sem rumo. Fico dando voltas, voltas, não sei mais onde me meter, nem o que fazer, nem aonde ir. Eu também, Papai Noel, sabe, tenho vontade de parar. E depois, me digo que na minha idade já não terei de esperar muito tempo.
O livro é delicado e sempre enfatiza sobre as escolhas da humanidade e a tolice do homo sapiens sapiens, que pouco pensa e muito faz.
"Foi então que, do nevoeiro do passado, surgiu uma fotografia entre as nuvens do presente, uma dessas fotos em preto e branco que Isy não queria por nada deste mundo que eu visse; uma dessas fotos publicadas logo depois da guerra num jornal iídiche. Entre um montão de armações de óculos e de pacotes de cabelos cortados prontos para ser expedidos, erguia-se uma montanha de sapatinhos de crianças: sapatilhas, botinas, galochas, sapatos de sair muito gastos, tamanquinhos, e até alguns minúsculos sapatos de verniz." - Mesmo que haja poesia e a veia cômica do autor nos leve com tranquilidade. A construção narrativa faz questão de mostrar a incoerência daquilo que queremos e o que temos.
O livro é belo, não para apenas na história da senhora Rosen. Há mais, e o caminho que o autor decide enveredar é incrível, repleto de humanidade e que traz o conforto e as lágrimas quem o lê. A sensação do autor ser alguém que conduz o leitor a história que ele precisa ler, sempre esteve entre a narrativa e o elo de sua graciosidade, as personagens.
E termino minha resenha com o texto em que Jean dedica ao seu editor, que morreu no dia 27 de outubro, antes dele pegar o livro finalizado em mãos, no mais, recomendo a cada um que leia, estamos envelhecendo e ficando sozinhos, mas ninguém é velho demais para sonhar que a sua solitude, basta:
Quando uma história termina, outra deve começar? No dia 21 de outubro de 2022, conforme combinado entre nós, eu devia entregar a Maurice Olender, meu editor e amigo muito querido, a última versão de meu conto para crianças tão velhas que no final morrem. Ora, ocorre que, por diversas razões, no dia 21 eu ainda não tinha colocado ponto-final neste texto. Claro que Maurice já tinha lido e aprovado múltiplas versões e só lhe restavam alguns trechinhos para examinar. Portanto, pensei comigo mesmo que, como não era sangria desatada, não estávamos, nem ele nem eu, amarrados a prazo. Assim, o texto em sua última versão ficou no forno na noite de 26 para 27 de outubro. E foi no dia 27 de outubro, de manhã, que Maurice não acordou e que sua tão querida e tão meiga esposa teve a dor de descobrir sua partida inesperada.
Se amanhã, Deus nos livre, me vierem o desejo, a força ou a loucura de me dedicar à redação de uma nova história para crianças muito novas ou muito velhas, terei de imaginar, e depois escrever, e depois corrigir, e depois acabar sem Jacqueline ao meu lado e, agora, sem Maurice. Então deverei aprender a viver sem o amor de uma e sem a amizade fecunda, fraterna e criativa do outro. Maurice, como autor, editor, historiador, em tudo o que empreendeu ? e empreendeu tanto e tanto! ? quis, antes de mais nada, ser livre, e o foi. Mas também quis que seus autores fossem livres, e eles o foram. No correr dos anos e dos livros tornou-se um amigo, um irmão, e mesmo, custo a dizer, um pai bem mais moço que eu. Ele adivinhava meus pensamentos, me compreendia, bem antes que eu mesmo tomasse consciência deles ou me compreendesse. Uma vez lá no alto, onde não duvido que tenha lugar reservado, talvez tenha topado com a sra. Rosenberg, ou com Isy, ou com o Papai Noel e sua cara-metade, a Mamãe Noel? Quem sabe até não se viu diante de Deus pai? Seja como for, vai saber levar todos os outros a escreverem histórias de vida, de amor e de bondade, à sua imagem. Minha mãe me dizia: de tanto contar histórias de morte, a morte vai acabar te agarrando e te pegando. Parece que a ?Indesejada das gentes? escolheu outra tática: agarrar-se àqueles a quem amo, ou pior, aos que me amavam.
Jean-Claude Grumberg Novembro de 2022.