edu basílio 10/11/2024coragem & acuidade clínica (III)
ao nos botar cara a cara com nossos constrangimentos, annie ernaux nos leva ao paradoxo da identificação e da estranheza simultâneas.
e ela o faz não apenas por meio da sua história familiar ("o lugar", "uma mulher", "a outra filha"...), ou do embate entre suas forças e vulnerabilidades como mulher ("o acontecimento", "paixão simples", "l'occupation", "o jovem"...). três de seus livros consistem em registros de 'flashes' de seu cotidiano em diversos lugares que ela frequentou desde os anos 1980, quando se mudou para cergy, na região metropolitana de paris -- que ela denomina "la ville nouvelle", a cidade nova. e qual seria a força motriz disso? como ela própria declara no preâmbulo do primeiro desses três livros, "journal du dehors" (título que poderia ser traduzido como "diário do lado de fora"):
"(...) il n'y a pas de hiérarchie dans les expériences que nous avons du monde. la sensation et la réflexion que suscitent les lieux ou les objets sont indépendantes de leur valeur culturelle, et l'hypermarché offre autant de sens et de vérité humaine que la salle de concert."
não há hierarquia nas nossas experiências com o mundo. a sensação e a reflexão que os lugares e objetos suscitam são independentes de seu valor cultural, e o hipermercado transborda de sentido e de verdade humana tanto quanto a sala de concertos.
"journal du dehors" compila registros de 1985 a 1992. um olhar novato talvez enxergue apenas aleatoriedade nessas minicrônicas (de poucas páginas, por vezes um só parágrafo cada). já uma leitura por quem conhece o projeto literário que ela estabeleceu desde "o lugar", no começo dos anos 1980, verá rápido que se trata da mesma essência, com uma inversão de perspectiva: ao invés de fazê-lo se valendo de sua história pessoal, ela nos confronta por meio do que acontece no ambiente urbano, calçadas, estações de trem, supermercados, consultórios médicos, bancas de jornal, pois
"(...) ce sont les autres, anonymes côtoyés dans le métro, les salles d'attente, qui, par l'intérêt, ou la colère ou la honte dont ils nous traversent, réveillent notre mémoire et nous révèlent à nous-mêmes."
são os outros, os anônimos com que esbarramos no metrô, nas salas de espera, que, pelo interesse [que nos provocam], ou a raiva ou a vergonha com que nos atingem, despertam nossa memória e nos revelam a nós mesmos.
ela dá continuidade a isso em "la vie extérieure" (em tradução livre, "a vida exterior" -- e permitam-me registrar a paronímia fonética com "la vue extérieure", expressão que designa a parte externa dos imóveis, suas fachadas, ou a vista que se tem a partir de suas sacadas e janelas).
o pitoresco quase sempre silencioso de cenas registradas nos metrôs, estabelecimentos comerciais e salas de espera de médicos entre 1993 e 1999 prossegue nessa obra. entretanto, a coisa recebe contornos um pouco mais explicitamente críticos: a insegurança de white-people de uma frança que teve o franco por moeda há séculos prestes a adotar o euro. os atentados em sarajevo, a guerra nos bálcãs, e em particular o genocídio na bósnia [que o também nobelizado austríaco peter handke afirma jamais ter existido], que causam mais vergonha do que consternação a quem vê as notícias nos jornais. os mendigos nas calçadas e escadarias, que as pessoas -- ela inclusive -- evitam encarar. a morte da princesa diana que domina a imprensa e abafa a decapitação de dezenas de argelinos em conflitos civis...
parece não haver limite para o que uma pichação no muro, o outdoor na rua ou na estação de metrô, o olhar (ou desvio de olhar) das pessoas no transporte público e no shopping podem revelar sobre o 'zeitgeist' em um dado lugar. por vezes, ela parece ter vontade de registrar tudo...
"(...) envie de relever un jour toutes les affiches collées sur les murs de plusieurs stations de métro, avec leurs slogans. pour fixer exactement la réalité imaginaire, peurs et désirs du moment. les signes de l'histoire présente que la mémoire ne retient pas -- ou juge indignes d'être retenus."
[sinto] vontade de catalogar um dia todos os painéis colados nas paredes das várias estações de metrô, com seus slogans. para fixar exatamente a realidade imaginária, os medos e os desejos do momento. os sinais da história presente que a memória não guarda -- ou julga indignos de serem guardados.
... mas quem disse que isso é cômodo? por mais que se queira criar registros detalhados da vida acontecendo, há um limite humano. isso exaure, não é possível ser uma simples testemunha passiva, uma escrivã neutra, sem lembrar que estamos todos neste mesmo caldeirão borbulhante chamado vida. e, então, parece bater a vontade de parar.
"(...) espérance, toujours vaine, de ne plus avoir rien à noter, de ne plus être happée par quoi que ce soit de ce monde, du flot d'anonymes que je rencontre et dont, pour les autres, je fais partie."
[tenho] esperança, sempre em vão, de que não haja mais nada para anotar, de que minha atenção não seja mais capturada pelo que quer que seja desse mundo, essa enxurrada de anônimos que eu encontro e da qual, para os outros, eu faço parte.
se nas duas obras anteriores os supermercados já eram um cenário bastante presente, em 2016 eles ganham um livro só para si, "regarde les lumières, mon amour" ("olhe as luzes, meu amor").
em minha opinião, dos três, esse é o mais bem planejado e de maior densidade psicológica, apesar (ou seria por causa?) de seus relatos se referirem a observações e anotações oriundas de um mesmo ambiente, em um período mais curto, entre fim de 2012 e fim de 2013. parece-me compreensível que a editora fósforo, no brasil, tenha optado por começar com ele (ou talvez se ater a ele; ainda não sabemos).
de acordo com AE, os supermercados ilustram com perfeição o sexismo e os preconceitos de classe, o que seu senso arguto de observação capta o tempo inteiro: a disposição das seções, a sazonalidade dos produtos, a localização de placas de advertência e os comportamentos dos consumidores na fila do caixa ou diante de uma prateleira de sardinhas enlatadas.
e por que os supermercados? ora, essa pergunta poderia ser a reversa: e por que não, se eles são um palco relevante do dia-a-dia de quase todos nós, onde nos encontramos e nos esbarramos, embora para todos os efeitos declaramos não estabelecer ali ponte alguma com ninguém? à parte os quartiers de montmartre, a sorbonne, o louvre e a torre eifell, os outros lugares não se prestam à ambientação literária? ou, nas palavras dela:
"(...) je m'étais demandé pourquoi les supermarchés n'étaient jamais présents dans les romans qui paraissaient, combien de temps il fallait à une réalité nouvelle pour accéder à 'la dignité littéraire'."
eu tinha me indagado por que os supermercados nunca estavam presentes nos romances que eram publicados, quanto tempo era necessário para que uma realidade nova pudesse alcançar 'a dignidade literária'.
e o que aparece com a leitura dessas crônicas é um retrato bastante plausível de como o capitalismo nos ranqueia em diversos graus de importância segundo nosso poder de compra, de como isso é feito de formas ora mais ora menos explícitas, e de como nós jogamos esse jogo de regras silenciosas algumas vezes revoltados, em outras entristecidos, mas quase sempre resignados. o que é ser rico, o que é ser pobre? ali parece haver uma possibilidade de resposta.
"(...) le début de la richesse -- de la légèreté de la richesse -- peut se mesurer à ceci: se servir dans un rayon de produits alimentaires sans regarder le prix avant. l'humiliation infligée par les merchandises: elles sont trop chères, donc je ne vaux rien."
o começo da riqueza -- da leveza da vida de rico -- pode ser medido da seguinte forma: pegar as coisas na seção de produtos alimentícios sem ter que olhar antes os preços. a humilhação infligida pelas mercadorias: elas são caras demais, logo eu não valho nada.
muitas vezes, durante a leitura dessas três obras (que, pessoalmente, eu NÃO recomendaria como porta de entrada para a literatura de annie ernaux), eu refleti sobre como a experiência me parecia similar a folhear um livro de fotografias de sebastião salgado ou de dorothea lange. e eis que então eu me deparo com essa reflexão da autora:
"(...) plus tard, en voyant les photographies que paul strand a faites des habitants d'un village italien, luzzano, photographies saisissantes de présence violente, presque douloureuse -- les êtres sont là, seulement là --, je penserai me trouver devant un idéal, inaccessible, de l'écriture."
tempos depois, ao ver as fotografias que paul strand fez dos habitantes de uma cidadezinha italiana, luzzano, fotografias estas assombrosas por causa da presença violenta, quase dolorida -- os seres estão lá, simplesmente estão --, eu pensaria me encontrar diante de um ideal, inacessível, da escrita.
bien, madame ernaux... parece que você conseguiu, de forma singular, alçar a arte literária ao status de máquina fotográfica do seu mundo, no momento histórico em que sua vida transcorreu.
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