Renan Barcelos 27/06/2012
Um mundo dentro de um metrô
Em Metrô 2033 (Editora Planeta; 2010; 416 paginas; R$ 39,90) o autor e jornalista russo Dmitry Glukhovsky apresenta para o leitor uma Rússia devastada para uma guerra nuclear. Com a superfície tomada por radiação e criaturas mutantes que surgiram para preencher o vazio no ecossistema, a única forma que os moscovitas encontraram para sobreviver ao ambiente hostil foi refugiando-se na vasta rede de túneis que descansa abaixo da capital russa.
O livro, de ficção-científica e tema pós-apocalíptico, foi lançado pela primeira vez em 2002, pela internet, sendo apresentado na integra no site do autor. Mais tarde, conforme o sucesso e as visualizações aumentavam, foi transformado em uma experiência imersiva e em 2009 já havia sido traduzido para mais de 20 países. Com o crescente sucesso, logo foi transportado para o mundo dos jogos pela 4A Games, que conseguiu tirar da história do livro um jogo de tiro em primeira pessoa bem competente.
O cenário da obra é bem trabalhado e coeso, apresentando um ambiente sujo, onde a humanidade decaiu ao ponto da quase extinção e vive confinada ao subsolo, dividindo seu espaço com criação de porcos, galinhas, cogumelos e também com outras criaturas bizarras. O metrô já não funciona neste mundo pós apocalíptico, seus trilhos são utilizados como estradas e as estações servem de morada para ao homem, sendo na maioria das vezes, o único local seguro em meio ao caos e ao bizarros segredos do lugar. Nos resquícios da nação russa, reina a escuridão e o medo, um lugar onde o ser humano luta para sub-existir, resistindo com pedaços da tecnologia passada e constantemente tendo que patrulhar as linhas de trem, um lugar de sons estranhos e perigo constante, apenas para defender sombras pálidas de sua civilização.
Tanto o jogo quanto o livro mostram a história de Artyon, um jovem morador da estação de VDNKh, que se vê diante de uma ameaça quase alienígena, onde criaturas demoníacas, diferentes dos mutantes por sua inteligência superior e capacidade de incutir pesadelos, assolam os túneis próximos à prospera estação, entrando no complexo lacrado do metrô à partir de velhas passagens que levariam até o jardim botânico. Recrutado por Hunter, um dos caçadores do metrô – pessoas de grande coragem e competência militar – Artyon acaba embarcando em uma viagem até o complexo de Polis, lugar em que ainda se preserva algo da cultura e dos velhos conhecimentos, onde ele deveria avisar os outros caçadores do novo inimigo que ameaça o que restou dos moscovitas.
No entanto, as semelhanças entre as duas mídias acabam por aí.
Um leitor que tenha primeiro encarado os sombrios labirintos digitalizados de Metrô 2033 talvez comece a leitura procurando pela ação, terror e adrenalina que são passados durante o jogo, no entanto, não os encontrará em grande quantidade na versão original do título.
Apesar da história ser essencialmente a mesma, o livro não se foca em tiros, lutas e perseguições. A viagem de Artyon através do complexo do metrô é quase uma jornada espiritual, como se cada encontro e dificuldade o fossem preparando para um destino que lhe estaria reservado. Em suas andanças, o jovem de VDNKh encontra diversos personagens, cada um com suas visões e filosofias acerca tanto o passado quanto o futuro. No centro de todas os debates que existem no livro, que mesmo em pedaços parece ser uma única grande discussão filosófica, esta o destino do ser humano, seu papel no mundo e próprio metrô.
A ambientação e a cultura são coisas muito trabalhadas na obra. Em cada estação visitada por Artyon, em cada pessoa que cruza seu caminho, é possível encontrar uma crença completamente diferente. Por mais que a distancia de viagem seja pouca e o tamanho seja diminuto, cada estação parece ter encontrado uma maneira própria de sobreviver, adaptando costumes antigos para a nova realidade brutal, fazendo o mesmo com a religião e com a filosofia. Apesar da constante escuridão, aquela região do metrô de Moscou é colorida com a diversidade de valores e idéias, formando algo como um ecossistema que aos poucos vai se equilibrando. Muitas vezes a impressão que se tem é que o Metrô é um imenso monstro, mutável e vivo, que engloba todo o resquício da civilização humana e que, de forma consciente, interage com os habitantes á partir de sons, idéias e acontecimentos estranhos. O sobrenatural parece habitar os túneis estranhos, alguns deles inclusive sendo presenciados por Artyon, mas a dúvida sobre se seriam realmente ocorrências sem explicação científica, ou simplesmente rumores e fenômenos plausíveis, persiste até o fim.
Os diálogos presentes no livro são muito bem construídos, trazendo sempre uma nova informação ou alguma discussão sobre os diversos valores que povoam o metrô. Contudo, salve Khan, os personagens que figuram a obra não têm muita personalidade. Não que eles sejam todos iguais ou irreconhecíveis, é possível criar certa imagem de cada um deles, no entanto, não existe nada marcante, são apenas plausíveis para suas funções e crenças, sem apresentar nada que os torne cativantes. No fim das contas, o próprio Metrô é o personagem mais bem construído, vivo e com identidade própria.
A trama do livro segue bem estruturada, sempre se mantendo na premissa original, mas sempre trazendo conflitos que fazem com que Artyon se desvie de seu caminho e conheça mais alguma particularidade ou perigo da sua casa. É possível identificar na história toda a estrutura da “Jornada do Herói” de Campbell, tanto a personalidade do jovem protagonista quanto o desenrolar de seus passos montam um desenrolar quase grego, com as roupagens de um cenário russo pós-apocalíptico; é possível ver em Artyon a imagem de Perseu. Essa abordagem atrapalha e ao mesmo tempo acrescenta à história – fez com que as partes posteriores à Polis soassem um pouco perdidas, por exemplo –, mas certamente contribui para o ar de “jornada filosófica” que o personagem principal parece seguir.
O mundo de Metrô 2033 trará ao leitor uma verdadeira salada cultural. É possível encontrar sociedades e personagens de diversas crenças e religiões. Dentro do complexo de túneis se encontram comunistas, neo-nazistas, socialistas, capitalistas, cristãos, satanistas, pagãos e uma gama de outros “istas”, além de diversas outras idéias e pensamentos. No entanto, essa grande diversidade não é simplesmente jogada no livro. A maior parte das culturas e filosofias do metrô parece encontrar o seu papel e seu sentido, casando com a história de uma civilização que tenta se reconstruir a partir de fragmentos do passado. Passagens como a da criatura mutante abaixo do Kremlin trazem metáforas para com o mundo presente e indícios de uma crítica social que pode permear a fundação dos túneis escuros. Talvez, no fim das contas, o Metrô seja um monstro que parodia os tempos atuais.
Por fim, nas palavras do próprio Artyon sobre o Grande Verme que escavou o mundo):
“– Sabe, já vi muitas coisas no metrô. Em uma estação acreditam que se cavar bem fundo, é possível chegar até o inferno. Em outra, que já estamos vivendo no limiar do paraíso, porque acabou a batalha entre o bem e o mal e os que sobreviveram foram escolhidos para entrar no Reino Celestial. Depois disso tudo, essa sua história sobre o Grande Verme de alguma forma, não soa convincente. Você, pelo menos, acredita no que diz?”
Então, ao ler o livro, prepare-se para encontrar de tudo nos túneis moscovitas.
Publicado originalmente em: https://eoutroscenarios.wordpress.com