Vania.Cristina 15/06/2024
Humanidade e identidade arrancadas
Um dos melhores livros que li esse ano. Eu já tinha assistido ao filme, achei, então, que não seria tão impactada pelo livro, uma vez que conhecia a história, mas não foi assim que aconteceu. A escrita da autora foi, aos poucos, me encantando, seja pela força das palavras, seja pela construção de cenas intensas e de realismo mágico, ou ainda pela narrativa cheia de camadas.
A história é baseada na vida de Margaret Garner, que se tornou símbolo da luta contra as Leis dos Escravos Fugitivos, no final do século XIX. O livro começa nos apresentando as moradoras da casa 124, da rua Bluestone, em Cincinnati, nos Estados Unidos. Estamos em 1873, e nessa casa vivem isoladas a ex-escrava Sethe e sua filha de 18 anos, Denver. Mas elas não estão realmente sozinhas, com elas aparentemente vive a assombração de um bebê. A partir daí a narrativa vai e vem no tempo várias vezes, nos trazendo outros personagens, costurando lentamente os acontecimentos e nos fazendo revelações.
Esse livro fala de escravidão com muita profundidade, porque alcança a mente do indivíduo que a ela está submetido. Se o que se passa no mundo externo é intenso, o que se passa no mundo psicológico dos personagens é ainda mais. E mesmo em liberdade, uma pessoa nascida escrava precisa construir dentro de si a identidade e a humanidade arrancadas, recolhendo caquinhos pelo caminho.
Há uma outra camada importante na obra que é a da espiritualidade. Baby Suggs, a sogra de Sethe, é a personagem que carrega uma mediunidade herdada de seus ancestrais, que dialoga diretamente com a natureza.
A história pode ser compreendida também como sendo de terror e horror, por causa do sofrimento físico e psicológico. Muitas vezes o terror é sobrenatural, porque há fantasmas e casa assombrada, energias poderosas desencadeadas por sentimentos avassaladores como solidão, culpa, medo, vergonha e dor. Energias que podem ser muito antigas, fruto do sofrimento compartilhado por milhares de escravos durante décadas.
São muitos os temas tratados, além da escravidão, como família, maternidade, comunhão, solidariedade, aceitação, liberdade. Mas também traição, solidão, desencontro, desumanização, tortura e abuso. Ou seja, tudo é muito forte e doloroso. As ações tomam proporções avassaladoras. No entanto, embora seja muito triste, a história não chegou a me derrubar. Mas sugiro cuidado com a leitura, há gatilhos para violência contra a mulher, contra a criança e contra o povo preto em geral.
De qualquer forma, esse livro é incrível e vale a pena. Há quem diga que é a obra prima da autora, ganhadora do Nobel de Literatura e do Pulitzer. Com certeza, influênciou outros escritores (Itamar Vieira Jr., por exemplo). É leitura imperdível, obra importante para a compreensão do mundo e para o exercício intenso da empatia. Recomendo com força.