DanseMacabries 29/05/2024
?A culpa sempre é indubitável?
O primeiro conto ?A primeira dor? sintetiza, em pouquíssimas páginas e com muito ardor, a necessidade de estar em equilíbrio consigo mesmo e o desespero que ?estar sempre por cima? causa no indivíduo. Em uma sociedade onde o alcance à condição de perfeição é a norma, nos permitir descer do trapézio é admitir o fracasso, doloroso.
No segundo conto, intitulado ?Uma pequena mulher?, eu acredito que tenhamos uma situação de conflito não conflitante. Quase como um paradoxo, a relação entre o narrador e a mulher pequena não existe. Não há nenhuma interação (comprovada) entre eles, apenas sentimentos de repulsa por parte da mulher e de incompreensão por parte do homem. Acho esse texto bastante aberto a interpretações, eu vejo mais a questão da escolha de um ?inimigo?, muito comum em realidades ditatoriais, por exemplo, em que devemos odiar algo (muitas vezes materializado em um tipo de indivíduo) mas nunca sabemos o porquê, então convencemo-nos de que há algo irritante sobre. Assim, nada acontece, um espectro de possibilidades toma conta da narrativa, levando ao eterno ?e se??.
O conto que dá nome à coletânea ?Um Artista da Fome? relata o sucesso e a derrota de um artista da fome, o qual vivia a sua arte, não por amor mas por obrigação (ao meu ver). Com o passar das páginas, sentimos junto ao artista seu decaimento, seu esquecimento. Começa com dúvidas quanto a veracidade de sua perfomance, em que o artista leva como ofensa, já que seu estado de jejum era o seu normal, era mais satisfatório a ele continuar nesse status, sendo forçado a comer apenas contra sua vontade. Com a fama dos artistas da fome diminuindo com o passar dos anos, nosso personagem vira uma exposição precarizada em um circo, onde ele não era nada mais que um empecilho para aqueles que queriam chegar até o estábulo. O público não tinha mais interesse nele, e justo nesse período de tempo o artista chega ao ápice de sua perfomance, mas sem plateia. Ele chega ao seu fim sozinho, junto a um monte de palha, apenas com sua fome o consolando, fome que nunca poderia ser alimentada, pois não existia alimento nenhum que saciasse a vontade daquele artista; nada era mais saboroso que a sua penitencia autoinfligida.
Gostei bastante desse conto, por mais que não tenha chego a uma interpretação mais concreta sobre.
Confesso que achei o conto ?Josefine, a Cantora ou o Povo dos Ratos? o mais fraco deles, mas ainda sim tem seu valor. A narrativa, bastante semelhante ao segundo conto do livro, se baseia em uma dualidade. O narrador tropeça em prestígio e indiferença em relação ao papel de Josefine naquela sociedade específica, a qual é marcada pelo conflito. Josefine é uma figura autoritária, mas sem poder, que rodeia em volta de si mesma, presa em sua própria concepção e ?grandeza?, entrando em pacífico conflito com a população. A cantora entrará para a história daquele povo, por conta de sua atribuída grandeza, mas será esquecida, por causa da natureza daquela sociedade (e de si mesma).
O último conto ?Na Colônia Penal?, na minha opinião o melhor, trata do sistema penal com inteligente ironia. A materialização do sistema de punição se dá pela nomeação dos personagens (oficial, soldado e condenado), sendo o explorador a visão de fora da realidade e, por assim dizer, crítica. Ele mantém-se distante da realidade daquela sociedade, sendo neutro aos seus modos de viver; apenas quando confrontado pela altura da máquina de tortura/morte ele mostra-se afetado. Quando o oficial percebe que o estrangeiro não compartilha de suas convicções e não irá ao menos ajuda-lo a manter o antigo sistema (e em sua opinião, o antigo correto), ele apela para a autodestruição pela própria máquina que compartilhou de seus dias de glória. O soldado e o condenado terminam alheios a tudo que ocorreu, mantendo-se alienados à favor do status quo. O estrangeiro rapidamente deixa aquela sociedade, livrando-se daquilo que o segura ali quando coloca-se num barco, longe daquilo.
Gosto muito da maneira como Kafka trata da alienação e da coisificação do ser humano, principalmente em situações burocráticas e complicadas, e acho que ele traz sua crítica em grande excelência nessa história.