Gerson 28/11/2023
Ser bom, é ser religioso?
“Inquilina de Wildfell Hall” tem duas temáticas que percorrem todo o texto e que funcionam como pilares sobre os quais o romance se sustenta. São elas: A desigualdade de gênero no casamento e a religiosidade enquanto sinônimo de moralidade.
A primeira questão (que é o ponto alto da obra) é muito bem trabalhada na medida em que vários casais vão sendo apresentados. É evidenciado a dinâmica disfuncional, injusta e absurda que sobrecarrega as mulheres, uma vez que se espera que sejam o tempo todo agradáveis e solícitas independentemente do que seus maridos façam, sem admoestá-los nem questioná-los por suas atitudes:
Pág. 208-209: “Hattersley, você sabe, ainda não cumpriu sua ardilosa ameaça de lançar sua preciosa pessoa sobre a primeira solteirona que resolver demonstrar ternura por ele, mas ainda conserva a determinação resoluta de se ver casado antes do final do ano. ‘Só que’, ele me disse, ‘preciso de alguém que me deixe fazer tudo do meu jeito, não como a sua mulher, Huntingdon, que é uma criatura encantadora, mas parece ter vontade própria e ser capaz de agir como uma megera de vez em quando’ (pensei: ‘rapaz, você acertou em cheio’, mas não disse nada). ‘Preciso de uma alma boa, pacata, que me deixe fazer o que eu quiser e ir aonde eu quiser, que fique em casa ou longe de mim, sem uma palavra de censura ou queixa, pois eu não suporto ser incomodado.’”
Pág. 230: "A julgar pelas aparências, sua ideia de esposa é alguém que ame devotadamente, que fique em casa esperando o marido e que o entretenha e proporcione seu conforto de todos os modos possíveis, enquanto ele quiser ficar com ela. E, quando ele se ausenta, que cuide de seus interesses, domésticos ou não, e pacientemente espere ele voltar, sem se importar como que ele pode estar fazendo nesse ínterim."
O segundo tópico, pregação de princípios cristãos, no entanto, é fraco e desanimador:
Pág.314: “— Haverá outra vida para o senhor e para mim — eu disse — Se for a vontade de Deus que semeemos lágrimas agora, é apenas para que possamos colher alegria depois. É a vontade do Senhor que não façamos o mal aos outros pela satisfação das nossas paixões terrenas. O senhor tem uma mãe, irmãs e amigos que sofreriam gravemente com a sua desgraça. Eu também tenho amigos, cuja paz de espírito jamais será sacrificada pelo meu prazer, ou pelo seu, com o meu consentimento. E mesmo que eu fosse só no mundo, ainda tenho meu Deus e minha religião e prefiro morrer a corromper minha vocação e abandonar minha fé no céu em troca de alguns anos breves de felicidade falsa e fugaz, uma felicidade que seguramente acabará aqui mesmo em infelicidade, para mim ou para qualquer outra pessoa!”
Pág.421: "'— Pense na bondade de Deus, e você só lamentará ter ofendido a Ele.
'— O que é Deus? Não consigo vê-Lo, nem ouvi-Lo. Deus é apenas uma ideia.
'—Deus é a Infinita Sabedoria, Poder e Bondade, e amor; mas se essa ideia é vasta demais para suas faculdades humanas, se sua mente se perde nessa infinitude excessiva, fixe-se Nele, que condescendeu em assumir nossa natureza sobre Ele mesmo, que ascendeu ao céu ainda em Seu glorioso corpo humano, em quem brilha a plenitude do Deus supremo."
Anne Brontë quer advertir o seu leitor contra comportamentos degradantes opostos aos “desígnios de Deus”. Prato cheio para quem compra essas ideias. Definitivamente não para mim.
“Inquilina de Wildfell Hall” é desnecessariamente longo e vai perdendo sua força à medida que se encaminha para o seu final. Com menos lamentações em formato de reprimendas morais eu teria gostado muito mais. Porém, por se tratar de um “clássico pioneiro da literatura feminista”, vale muito a pena a leitura.