NaiaraAimee 05/08/2024
Que comunhão tem a luz com as trevas [...]?
“Mantenha a guarda sobre seus olhos e ouvidos que são entradas do seu coração, e sobre seus lábios que são a saída, senão eles trairão você em um momento de descuido”.
Reler esse livro pela terceira ou quarta vez, agora pela edição da Principis, foi uma experiência ainda melhor que as anteriores! Sinto que a maturidade me traz novas perspectivas à medida que vou me deparando com a história da Helen e todos os pequenos detalhes que a permeiam.
Farei um breve resumo do livro, mas tenho que lhe dizer que se você, assim como eu, gosta de pegar um livro sem saber quase nada sobre, então não leia minha ou nenhuma resenha e nem a sinopse. Um dos plots é a base central da história, pois uma boa parte dela gira em torno desse mistério que se resolve antes da metade da obra.
RESUMO
Na mansão decadente de Wildfell Hall surge uma nova inquilina. Ela é jovem, bonita, misteriosa e tem um filho. Todos mostram interesse pela vida da mulher, mas, à primeira vista, Gilbert a acha afetada e arredia. No entanto, ao conhecê-la melhor, ele descobre que a jovem, que todas acreditam ser uma viúva, é muito interessante e um sentimento passa a crescer em seu coração.
“Seu rosto estava virado em minha direção e nele havia algo que, uma vez visto, convidava a olhar de novo”.
Apesar dos sentimentos e da crença inabalável no bom caráter de sua querida Helen e de defendê-la com sua alma de todas as fofocas que passam a rondá-la, uma situação faz com que ele tome um baque. No entanto, quando Helen lhe entrega seu diário, Gilbert passa a entender por que a jovem mãe é tão reclusa e relutante em aceitar os sentimentos que um tem pelo outro.
O diário leva Gilbert e o leitor para alguns anos antes e nos apresenta uma Helen mais jovem e com ímpetos de uma garota forte, mas apaixonada. Vemos seu envolvimento com Arthur, um homem dado aos prazeres mundanos, de aparência agradável e hábitos pouco convencionais. Ela sente que pode levá-lo ao caminho do bem, mas não imagina as adversidades que o futuro casamento lhe reserva.
“Se ele tem sido errante, considerarei que minha vida será bem gasta tentando salvá-lo das consequências de seus erros antigos e lutando para chamá-lo de volta para o caminho da virtude.”
OPINIÃO.
Esse texto está sujeito ao que você pode considerar spoiler, então sugiro que leia o livro e venha ler essa resenha depois, assim podemos conversar!
Meus colegas leitores, eu preciso começar reforçando uma das resenhas que li aqui mesmo no skoob sobre Deus ter depositado todo o dom da escrita nas irmãs Brontë! E a Anne foi certamente a que recebeu mais desse dom, embora seja a menos reconhecida. Tenho sempre a resposta pronta quando me perguntam meu autor favorito e digo “Charlotte Brontë”, pois lembro minha emoção e fixa obsessão por Jane Eyre, o quanto eu dizia para mim mesma “Deus, se formos todos para o céu, permita-me conhecer essa extraordinária autora”. Porém, creio que com o passar do tempo, a Anne roubou esse posto. Ahhh, não sei se posso escolher entre as três! Amo todos os livros delas! Mas sem dúvidas, meu apreço pela Anne cresceu em um nível extraordinário.
Voltando ao foco dessa resenha, gostaria de explanar sobre cada um dos personagens, então por que não começar pelo Gilbert?
GILBERT
De início, a sensação é de que Gilbert é um rapaz fútil e até um tanto libertino, embora de forma alguma possamos dizer que ele tenha uma vida desregrada ou vícios. Penso que ele nos é apresentado como um rapaz imaturo para em seguida vermos o oposto. Sua maturidade acaba sendo regada pela convivência com Helen, que é uma mulher forte, sensível e dedicada. Em nenhum momento ela lhe dá abertura ou deixa ambígua a relação de amizade que ambos têm, mas é dentro dessa provação que Gilbert encontra o seu crescimento. Ainda assim, só podemos dizer o quão ele evoluiu na obra depois que o rapaz lê os diários e descobre o motivo de Helen e ele não poder viver seus sentimentos. A admiração pela força interior e a abdicação do conforto que é estar com ela, com a perspectiva de ser sempre um amigo e mesmo assim aceitar essa situação sem insistir em uma relação que seria agressiva aos princípios da Helen, tornam Gilbert um mocinho que, apesar dos defeitos, merecedor desse amor.
“Quando chegar a hora de ficarmos juntos para sempre, poderemos trocar pensamentos sem a intervenção desses frios intermediários: caneta, tinta e papel”
ARTHUR E HELEN
O Arthur me lembrou muito os mocinhos dos romances de época contemporâneo: lindo, libertino, com um passado duvidoso. É o cavalheiro que ousa infringir as etiquetas impostas pela sociedade e que salva a mocinha de conversas aborrecidas e as diverte com suas tiradas. E mesmo quando a mocinha é do tipo forte e se mostra difícil, somos inebriados pela perspectiva de uma redenção. Eu costumava suspirar por esses personagens e cair de amores por eles, mas conforme fui envelhecendo (escrevo essa resenha aos 32), sinto que esse tipo de personagem não tem mais nada a me oferecer. Em termos carnais? Talvez sejamos um tanto quanto deslumbradas como a Helen foi e você verá a seguir, afinal, há tanto charme na descrição desses personagens, porque existe uma linda e fabulosa mudança de comportamento através do amor que as mocinhas despertam neles (ah, os livros!).
Arthur têm quase todas essas qualidades que citei acima. Ele aparece para nós com a visão da Helen, uma jovem que se apaixona pela vivacidade dele tendo em vista os pretendentes que ela tem e o quão não despertam nada nela além do tédio. A jovem conhece o rapaz em Londres e acalenta esperanças, porém temos a tia que a criou, aconselhando-a a pensar tendo em vista a forma mundana como Arthur leva a vida, os boatos de ele já ter se envolvido até com uma mulher casada. Se por um lado, eu estava ao lado da tia nessa questão, por outro acredito que incentivá-la a se casar só por segurança e com quem não amava não ajudou muito na questão.
Helen é levada a voltar para o interior por causa da doença do tio e pensa com melancolia que nunca mais verá Arthur. Quando ele é convidado para passar a temporada no campo com eles (não só ele, mas alguns outros amigos), os sentimentos da jovem se reforçam. Nesse ínterim, no entanto, algumas nuances de seu caráter se apresentam aqui e ali. Não citarei todas, mas penso que a cena em que ele pega o retrato e a cena em que rouba um beijo dela acendem um pequeno alerta não tanto pela atitude em si, mas pela maneira como ela ocorre. Entendam: não é pela foto ou beijo, mas a forma como ele faz isso e soa não como alguém feliz por saber que também é amado, porém como alguém que tem seu ego inflado.
Além disso, as amizades de uma pessoa também falam muito sobre ela. E de forma magistral, Anne não faz sua personagem ser cega aos defeitos do seu objeto de afeto. Pelo contrário: Helen está muito ciente das imperfeições do caráter de Arthur e deixa isso evidente pelas conversas que tem com a tia, mas Helen acredita que, com a ajuda de Deus, ela vai conseguir colocá-lo no caminho da retidão. Creio que em outras circunstâncias, se ela não estivesse tão apaixonada, veria que Ele deu sinais para que ela nem entrasse nessa relação.
Para finalizar a primeira parte, acredito que tudo só piora quando Arthur conta sobre um de seus amigos e como o incentivou a continuar jogando e bebendo. Aquilo faz Helen se perguntar se ela está fazendo a escolha correta ao se casar, mas acaba por se convencer de que sim, afinal, “ela pode melhorá-lo”.
Já na lua de mel, Arthur se mostra egoísta ao não passear com sua esposa, porque já esteve em todos aqueles lugares. Então acompanhamos o desenvolvimento da relação, as brigas, o descaso de Arthur que só vai escalonando a cada capítulo. Vemos uma Helen fervorosa tentando de todas as formas conscientizar o marido – marido esse que fica longe por meses e a deixa só. Cada vez que Arthur fica longe com os amigos volta pior até que o vício da bebida o consome. Eu creio que parte do personagem foi inspirada no irmão. Penso que o Patrick não era mau ou autoritário, mas era apaixonado por uma mulher casada (daí o desregramento) e tinha o vício da bebida. Em qualquer século, esse é um maldito vício que destrói a personalidade da pessoa, sua saúde e aparência. Então Anne sabia bem o que ela estava narrando.
Apesar dos hábitos ruins, da terrível traição e de tudo de mau que vem de Arthur, o único que move sua decisão de deixar o marido é seu filho. Quando vê que o pai quer levar a criança pelo mesmo caminho, a coragem para não permitir isso faz com que ela se levante para a mudança.
DEUS NA OBRA
Uma vez, para ganhar horas complementares, assisti a um webnário em comemoração aos 200 anos de Anne Brontë. Pouco se falou sobre ela, na verdade, mas algo que me marcou foi que os professores, doutores, tradutores, brincaram de modo pejorativo sobre as crenças da Anne e uma tradutora famosa de Jane Austen disse que era por não haver religiosidade nos livros da Austen que ela a preferia. Eu penso que não haveria uma Helen inspiradora sem um Deus em que ela depositasse sua fé.
A fé como é retratada em Wildfell Hall é uma das coisas mais puras e doces na literatura. Ela não nega a Deus diante de quaisquer circunstâncias, seu amor por Arthur em nenhum momento é elevado ao mais alto grau, deixando-O abaixo de seus sentimentos, mesmo quando o rapaz lhe pede que o faça, pois Arthur tem ciúmes do amor dela por Deus, já que seu egoísmo e descrença o faz desejar ser o centro de todas as coisas. Quando Helen diz que gostaria que ele amasse Deus até mais do que a amava, porque assim ela poderia acreditar no amor dele, é porque no momento em que você O ama não consegue entregar para o outro semelhante nada além de respeito e afeto sincero.
“O que você é, senhor, para se colocar como um deus e querer disputar a posse do meu coração com Ele, a quem devo tudo que tenho e sou.”
Na adaptação da BBC, Helen e Gilbert se beijam quando ela ainda está casada, maculando a obra original em que, não pela seu própria força, mas pela força que ela encontra em Deus e na certeza de que, se permanecer firme nesse mundo em que tudo é passageiro, ela encontrará na eternidade a alegria verdadeira e vai habitar com Deus. Lá também encontrará aqueles que ama. É por causa dessa fé, que ela suporta todas as provações que passa com Arthur e não se entrega a derrota e solidão.
“Quando digo para não se casar sem amor, também não a aconselho a se casar somente por amor; há muitas , muitas outras coisas a se considerar.”
“Apesar de a vida de solteira não trazer alegrias, pelo menos suas tristezas não serão maiores do que consegue suportar”.
Eu queria falar muito mais sobre esse livro, explanar tudo que eu sinto ao lê-lo e todas as questões que apresenta, mas essa resenha ficaria ainda maior. Tudo que posso dizer sobre essa obra é que ela é poderosa e deve ter sido muito mais em seu tempo. Ela era cristã não importa em que lugar queiram colocá-la, e essa justiça em sua veia provinha muito dos ensinamentos de amor com os quais ela cresceu (e aqui me refiro aos ensinamentos bíblicos). A Helen é seu panfleto ambulante de fé e depois de tudo que passou, ela não excluiu o masculino da sua vida e nunca tratou o Gilbert com a presunção de que ele seria ruim como Arthur por ser homem. Helen abriu-se para o amor, porém dessa vez com o cuidado de observar e saber se seu amado caminharia na mesma estrada, não apenas se dizendo ser, mas sendo de fato.
“Deus é sabedoria infinita, poder, bondade e AMOR; mas, se essa ideia for muito vasta para suas faculdades humanas, se sua cabeça se perde em tal esmagadora infinitude, fixe-a nAquele que condescendeu em assumir nossa natureza por Ele, que se ergueu aos céus mesmo em Seu glorioso corpo humano, no qual reluz a completude divina.”
Sobre a edição: eu gostei da tradução, mas não achei perfeita. Expressões como “Ó/Qual!” ficaram sem nexo! (“Ó” nós usamos quando é de “olha!”, caso contrário é “Oh!”). A edição da Landmark é boa, porém letras mega pequenas. A da Pedrazul é a melhor até agora: boa tradução e há várias referências, principalmente das partes recitadas da bíblia caso você queira saber a qual livro pertencem. A edição de 1,99 da mimética me deixou cabreira, pois quando fui fazer comparação nos textos que tinha disponível físico e virtual, vi que eles suprimiram 90% da fala da personagem, então como confiar que no texto inteiro não há várias passagens com supressão? Avaliem bem antes de comprar uma tradução.