lucasfrk 23/10/2022
Narrativas do espólio ? Resenha
?Existe muita esperança, mas não para nós?.
? Franz Kafka
Este aforismo que serve de epígrafe a este reles texto parece bem sintetizar toda a obra de Franz Kafka, certamente um dos maiores enigmas não só da literatura moderna, mas também mundial. Tal condição se deve estritamente a inesgotável multiplicidade de análises possíveis de uma obra plurissignificante, irrompendo às novas gerações de leitores com novas indagações. O vigor dos escritos kafkianos ? marcados pela hermenêutica existencial ? parece advir de um certo humor irônico, que transparece na epígrafe deste texto, evocando a plasticidade de autores clássicos, como Homero e Cervantes, em um tom de paródia.
?Narrativas do espólio? (Erzaelungen aus dem Nachlass), livro póstumo de seus escritos, publicado pelo amigo e testamenteiro Max Brod entre 1914 e 1924, reúne 31 textos diversos ? que variam de tamanho e de feição ? do autor que nunca vira publicados em vida (apenas um sexto da obra kafkiana veio à luz enquanto ele era vivo).
Na antologia nota-se sua prosa lapidar, mas também a sutileza poética de um dos maiores criadores de narrativas breves. Com estilo seco e assertivo, veladamente irônico e alusivo, Kafka confere uma dimensão profética ao, a partir do fantástico, redimensionar a realidade das estruturas de poder e das relações humanas, praticando as situações de inversão ? tão comuns a sua produção literária ?, criando uma atmosfera lúgubre, claustrofóbica, que desnuda as estruturas de poder, das dimensões mais internas da sociedade (como a família) até as macro-estruturas do Estado. Kafka desvela dimensões de hierarquia, obediência e resignação, as narrativas que encerram sua produção literária e que confirmam o caráter fragmentário de sua arte com a aspereza e a brutalidade que emanam do poder de condensação dos pesadelos humanos.
É uma miscelânea de laivos políticos e religiosos, com núcleos temáticos bem delimitados, em que se percebe tramas do comércio (?O vizinho?, ?O casal?), tramas do direito (?Sobre a questão das leis?, ?Advogados de defesa?, ?Blumfeld, um solteirão de meia-idade?), a desmitologização dos mitos clássicos (?Prometeu?, ?Posêidon?, ?O silêncio das sereias?); e os personagens-animais (?O mestre-escola da aldeia?, ?Um cruzamento?, ?Pequena fábula?, ?Investigações de um cão?). Nessas fábulas, que, incorporam o elemento fantástico e o elemento lúdico, o narrador é antimoralista. Nessa revisitação das grandes obras de arte, predomina o aspecto enigmático, o insólito de suas formidáveis parábolas que afeiçoam o leitor, estupefato pela densidade ? porventura enfadonha, mas fascinante ? da prosa kafkiana.
O humor de Kafka, contudo, é um abafado por dores e angústias da dimensão burocrática do trabalho. Na coexistência dos sentimentos de absurdo e de culpa, essas personagens, unidimensionais, são alojadas em bruscas e silenciosas intervenções do fantástico sobre o fundo descolorido do cotidiano mundano. A voz que narra o texto kafkiano é uma voz que jamais socorre, nunca exterioriza sua angústia, na verdade, evadindo-se e fazendo do leitor tão insciente dos acontecimentos quanto o narrador, experimentando sua solidão e sua desilusão.
Os textos de Kafka são cansativos, mas são sobretudo convites a uma tomada de consciência da opressão absurda que sofre o homem moderno frente às instâncias superiores de poder. Labirintos, construções e repartições públicas preencherem os cenários kafkianos porque servem de metáfora para a construção de um mundo cada vez mais estreito, por onde impera a mecanização do homem, seus vieses imperativos, arbitrários e autoritários, sem possibilidade de redenção espiritual. Os sujeitos em crise lancinante ? essencialmente kafkianos ? são, em última análise, soterrados pelo mundo: um mundo destronado de qualquer subjetividade, reinado pelo capitalismo tardio, pelos regimes totalitários, pela massificação e pela alienação apequenadora dos sujeitos. Kafka é sublime porque, imbuindo-se da lógica do absurdo, faz com que o real perpasse do latente à plena expressão. Disto, resta a angústia, a imobilidade e impotência; no entanto, ainda existe esperança ? sim, muita esperança, mas esta, não para nós.