sr. felix 18/03/2022
Herói das próprias circunstâncias.
"Se serei o herói de minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar."
E é com essas palavras que David Copperfield inicia a narração de sua própria história. Fica subtendido, ao ler esse primeiro trecho, que inevitavelmente ele será herói. A pergunta que fica é: herói de quê, de quem?
"Heros" (herói, em latim), é um termo atribuído a quem faz o bem corajosamente, intencionado a proteger e ofertar segurança a outrem. Dito de outro modo, um herói é alguém cujo autosacrifício voluntário visualiza apenas o bem alheio, sem interesses individuais. Assim, podemos afirmar que um herói é um altruísta.
Tendo isso em vista, concluiremos que heroísmo solitário não existe; seria contrário a natureza dessa virtude. Pois para sê-lo há a necessidade de existir alguém além de si ? alguém em perigo iminente, ameaçado pelo mal, sofrendo escassez ou reclamando privilégios. E quem mais, além de David Copperfield, não sofreu ou sofre opressões semelhantes no dia-a-dia?
Abandono. Consternação. Desconsolo. Solidão. Sofrimento. Traição. Tudo isso e um pouco mais acontece nesta história ficcional e nas histórias reais também. Contudo, tanto na ficção quanto no mundo real, são os pequenos heróis que impulsiona o motor da vida.
No universo copperfieldiano, pequenos heróis estão por todo canto. Eles não levantam o estandarte vitimista pra mostrar como a vida é difícil, como eles recebem dolorosamente os golpes da pobreza, como as traições e os abandonos fizeram de sua existência um inferno, ou como suas vidas miseráveis deveriam ser melhores. Não. Eles escolhem viver ? viver e fazer o bem. Apenas isso.
David Copperfield conviveu com muitas destas criaturas ao longo da vida. Na infância, foi o cuidado e o afeto de sua jovem mãezinha (Clara Copperfield) e de sua querida babá (sra. Peggoty) que lhe trouxe conforto nos anos de convivência com os maléficos Murdstone. Um pouco mais tarde, já órfão, sem perspectiva e sem rumo, foi subsidiado por sua tia nunca vista antes (Betsey Trotwood) e a partir de então ela o ama incondicionalmente. Na peregrinação, encontra amigos fiéis como o sr. Peggoty e Ham, o sr. Wickfield e Agnes, o dr. Strong, o pequeno e bondoso Traddles, o sábio e demente sr. Dick, o sr. e a sra. Micawber ? todos amigos fiéis que levaria até o fim da vida.
Foram esses pequenos heróis que criaram o herói David Copperfield. A bondosa abnegação de cada um deles formaram outro herói. Sem eles, ele não seria quem foi. Mas, à pergunta inicial: "herói de quê? de quem?", respondo: herói da própria história, portanto, herói de si mesmo. Para amar e fazer o bem, David Copperfield sabia, desde a infância, que era preciso salvar antes a si mesmo.
Suas escolhas fazem eco a máxima de Ortega: "Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim". Escolher o bem e afastar-se do mal, dar preferência a fidelidade e ir na contramão da perfídia, amar os bons ? mas também os ruins ? fez de Copperfield o herói da própria vida. Sigamos todos este caminho.