Lucas 01/07/2017
A agitada vida de um protagonista problemático – Resenha para os dois volumes
Seja em livros, filmes ou qualquer outro tipo de entretenimento, é normal que se torça o nariz para sequências. É raro que a segunda parte de uma história, cujo sucessora tenha sido incrível, mantenha o nível de atração. Até por isso, em casos assim, a sequência é muitas vezes cercada de expectativas menores: o leitor, nesse caso, crê que se tratará de um bom livro, mas que não terá a mesma consistência da obra que o antecedeu.
A saga O Tempo e o Vento, do gaúcho Erico Verissimo é um excelente exemplo desse raciocínio. A primeira parte, O Continente, é genial: misturando a história turbulenta do Rio Grande do Sul entre 1745 e 1895 com personagens fictícios de substância eterna, ele abre muito bem a saga. Além disso, é um livro que funciona perfeitamente sozinho, pois não deixa pontas soltas ao fim, com o destino dos personagens mais importantes se resolvendo ou deixando-se encaminhado. Ao fim da leitura e antes de iniciar O Retrato, a segunda parte do épico, o leitor fica com a mesma sensação do exposto no início: certamente será um bom livro, mas que carecerá de alguns pilares fictícios que tornam O Continente tão maravilhoso, como o casal formado pelo incrível Capitão Rodrigo Cambará e a exemplar Bibiana Terra.
Mas as primeiras páginas de O Retrato desconstroem isso. O mesmo fascínio narrativo demonstrado em O Continente aparece aqui renovado. Com a mesma técnica de narrar primeiro o tempo "presente" (1945) e fazendo digressões (bem menos frequentes que o antecessor) ao passado, a narrativa adquire ares ora lúdicos, ora históricos. A grande diferença é temporal: enquanto a primeira parte de O Tempo e o Vento demonstra 150 anos da história do RS, O Retrato vai realçar uma parte da história de 36 anos da família Terra Cambará, entre 1909 e 1945. Esse relato temporal é parcial: a sinopse de O Arquipélago, obra que fecha a trilogia, dá a entender que é nela que estarão mais fielmente detalhadas as turbulências históricas que ocorreram nestas quase quatro décadas. Assim, O Retrato começa do "presente" e volta ao passado, iniciando, com minúcia, esse caminho de volta a 1945, mas que não é totalmente realizado, ficando parte desse retorno narrativo para O Arquipélago. Este é um detalhe crucial que difere o livro de O Continente, cuja história retrocede e volta ao presente, gerando uma obra mais "redonda".
Este aspecto cronológico, de menor abrangência, é um argumento favorável à tese inicial de que O Retrato é um pouco inferior literariamente. Pensa-se de antemão que agora a monotonia seja maior, com detalhismos cuja necessidade é questionável. Mas ao deixar a narrativa um pouco menos dinâmica, Erico detalha a vida do interior do Rio Grande do Sul do início do século XX, com as colônias alemãs e italianas, a vida na cidade (Santa Fé, pano de fundo fictício de toda a história, agora é uma cidade típica do interior, com duas ruas calçadas, restaurantes, etc.) e o cotidiano nas estâncias. O minuano (vento frio de inverno, normalmente vindo do sul), a forma de falar, com várias gírias, o gosto do gaúcho em arranjar "pelejas", tudo isso está aqui. Para quem desconhece a vida no sul do Brasil (principalmente no RS e em SC), estas são características fascinantes e até peculiares. Mas para quem é daqui, a impressão que se tem, assim como em O Continente, é que O Retrato é uma homenagem ao povo gaúcho; o leitor que é natural do sul sente-se homenageado com as canções, os relatos, as lendas e os diálogos que permeiam a obra. É uma maravilhosa volta ao passado, onde a forma de viver das gerações anteriores, tão fielmente representada, é uma ferramenta que toca e emociona o leitor quase o tempo todo.
Em termos mais práticos, O Retrato (lançado dois anos depois de O Continente, em 1951) conta a primeira parte da trajetória de vida do Dr. Rodrigo Terra Cambará, bisneto do eterno Cap. Rodrigo. Na obra anterior, ele era apenas uma criança, mas Verissimo dá a entender que ele é o grande protagonista de toda a saga. Médico formado, a história começa, em termos cronológicos, com o seu retorno a Santa Fé, onde ele toma partido nas disputas políticas locais e até nacionais (a eleição do Marechal Hermes da Fonseca para presidente em 1910 adquire grande espaço na obra). Ao fazer esse relato, o autor demonstra a realidade "bélica" das eleições da época, bem como certos "aspectos obscuros" que as envolviam (ainda hoje no sul do Brasil, as eleições municipais são cercadas de imensa expectativa, com muitas farpas e divisões profundas nas cidades menores). A presença e menção a personagens reais (como o senador Pinheiro Machado, um dos maiores políticos da história do RS) dá ainda mais veracidade à ficção, tornando-a crível sob o ponto de vista de retrato da realidade da época.
O protagonista é imperfeito, contraditório e bipolar: ora carismático, lembrando o seu bisavô, ora individualista, preconceituoso e possessivo. O Dr. Rodrigo pode sim ser uma extensão do seu antepassado homônimo, mas é inegável que ele possui alguns defeitos pessoais mais sérios, que podem fazer o leitor, no mínimo, questionar a sua real importância, especialmente os relacionados à adultério e, principalmente, cobiça, aspectos tão presentes no clã Cambará. A mistura de presunção e altruísmo é o que define o "filho pródigo" de Santa Fé, o que só evidencia a sua alta complexidade. Há esperança, contudo, de que sua personalidade se transforme positivamente com o tempo que não foi enquadrado por O Retrato e que deve estar incluso na narrativa de O Arquipélago. O seu desfecho, carregado de aspectos sombrios, permite acreditar nesta hipótese.
Erico Verissimo é, sabidamente, um dos maiores autores nacionais do século XX. Uma característica interessante é que ele escreve de uma forma positivamente diferente em O Tempo e o Vento: quando se lê, por exemplo, Caminhos Cruzados ou Incidente em Antares, duas das obras mais populares da carreira de Verissimo, se está diante de um ótimo autor, que narra suas histórias sem futilidades ou aspectos forçados. Mas quando se está lendo a saga da família Terra Cambará, além destes pontos positivos, o leitor se sente diante de um grande literato, profundo conhecedor da história do seu Estado e da sua gente. A já mencionada inserção de personagens reais na narrativa (algo que não ocorreu de forma direta em O Continente) contribuiu para que a ficção seja carregada de realidade, deixando-a totalmente desprovida de qualquer tipo de artificialidade.
Problemas de saúde do autor adiaram seguidamente o lançamento da obra que fecha O Tempo e o Vento, O Arquipélago, lançado apenas em 1962. É importante destacar isso porque O Retrato, contrário ao seu antecessor, não é uma obra que "se resolve" por si mesma. Dezenas de pontas soltas e temas não resolvidos ficam para a última parte da saga. Assim, é até recomendável que ambos os livros devam ser lidos quase seguidamente, a fim de que não se perca o encanto despertado na obra que apresenta o Dr. Rodrigo. E diferente de O Continente, O Retrato trás grande expectativa para a obra seguinte, que trará a continuação e o desfecho da história da família Terra Cambará, que tão bem representa o fascínio que é ser natural do sul do país.