spoiler visualizarClayton 18/08/2021
O preço da existência
É duvidoso, em todo o século 20, encontrar exemplo mais fascinante de relação intricada entre obra e autor que o de Yukio Mishima e sua obra. Talvez nenhum outro autor tenha feito de sua própria vida um elemento artístico como fez esse escritor japonês, e essa constatação implica tanto em prejuízo quanto benefício à criação literária. Não que uma obra artística se configure menor à medida que mais se aproxime da vida pessoal de seu criador, mas certamente essa aproximação pode afetar profundamente o escopo da obra enquanto peça autônoma, devendo assim muito de sua força a essa relação involuntária.
A questão torna-se mais periclitante quando envolve a vida espetacular de uma figura como Mishima, envolta em certo narcisismo e capaz de levar às últimas consequências seus ideais; tanto que o fez quando, em 1970, invadiu, com sua seita de extrema direita, um quartel japonês, mantendo reféns e lendo um manifesto a favor das tradições de seu país — então em profundo processo de ocidentalização — a que o escritor se opunha. Ali ele encontra então a morte, pelas próprias mãos, rasgando o ventre, e pelas de um discípulo, que o decapita com uma espada samurai, completando assim um ritual tão característico da história de seu país.
Como as futuras gerações poderão ler sua obra à margem desse espetáculo estilizado?
É uma questão inquietante, sem uma resposta satisfatória. Talvez a saída seja admitir como uma chave hermenêutica adicional a leitura paralela dessa dupla jornada — vida do autor e obra — enquanto progressão de uma ideia existencial, cuja nascente se situa em 1949 com seu grande sucesso Confissões de uma máscara, desaguando por fim no Mar de fertilidade (tetralogia finalizada em 1970) e na morte do autor.
Ideia existencial cada vez mais desiludida com a vida, de modo geral, e com os rumos da nação, em particular; processo no qual o romance Vida à venda, de 1968, assume um expressivo papel.
Oferta e procura
As primeiras páginas do romance apresentam ao leitor um jovem peculiar, Hanio, recém-resgatado de uma tentativa frustrada de suicídio dentro de um trem em Tóquio. Funcionário exemplar, sem dificuldades financeiras, ou de qualquer ordem, e sem qualquer paixão insatisfeita que lhe justificasse a estranha decisão, desta subitamente se tornara convicto ao ver de repente uma barata se refugiando num jornal caído no chão, e nele conseguindo se camuflar por entre as letras impressas, tornando-se estas, em sua visão, outras tantas baratas. Hanio tem então nesse momento um insight (“Ah, é assim que as coisas são neste mundo!”) e deste parte para sua tentativa de suicídio. E, após o insucesso deste, para uma decisão mais inusitada: por a própria vida à venda num jornal.
Esse é o eixo da obra, embora o leitor não tarde em descobrir que ela não se limita a essa premissa, para sua surpresa. Por meio de Vida à venda Mishima nos apresenta o retrato moderno de um Japão pós-Segunda Guerra já adaptado a uma ordem mundial que tem, nos valores atuais de economia, tecnologia e cultura ocidentais, a bússola definitiva para qualquer ideia de avanço sociopolítico. É esse Japão que emerge dessas páginas, com a chaga do horror nuclear já cicatrizada, assimilando o que o ocidente lhe tem a oferecer, inclusas aí as pústulas sociais do capitalismo moderno, como o crime estruturado em máfias e contrabando de armas, as desigualdades sociais, os bas-fonds onde imperam os narcóticos e a prostituição, etc.; um Japão onde a vida bem pode ser concebida como um produto a mais, dentre tantos outros, a ser descartada pela máfia, ou comprada para um fim específico.
É um processo de contínua degradação de valores e de elementos vitais (a própria vida) cujo ápice parece ter sido alcançado na contemporaneidade, naquilo que Zygmunt Bauman denominou modernidade líquida (visível inclusive nas relações humanas na obra). De fato, o que sempre foi sólido parece estar se desmanchando no ar, sem um sentido coeso:
A ideia do suicídio lhe ocorrera de repente, da mesma forma como teria pensado em fazer um piquenique. Se insistissem em um motivo, não lhe restaria senão dizer que, precisamente, a ausência de motivo fora o motivo, que mais poderia dizer?
Contudo, a obra não se ocupa em especular a origem desse processo degenerescente, nem defender uma tese a respeito. Ela simplesmente constata um estado de coisas, e o faz de forma cabal.
Um problema estético
Vida à venda assinala o talento de Mishima em conduzir muito bem uma narrativa, no sentido de captar a atenção do leitor. Talento lapidado certamente em sua experiência com folhetins (do qual a obra presente faz parte), o que se reflete aqui naurdidura da trama, com suas reviravoltas às vezes mirabolantes, e nos finais de seus capítulos (leves e sintéticos), com o recurso do cliffhanger. Sem sombra de dúvidas, o leitor moderno encontrará nessas páginas, não obstante a premissa sombria, uma fonte de leitura prazerosa, a famigerada “leitura que prende”.
Contudo, o leitor já experimentado no cânone mishimiano através de sua primeira obra estranhará talvez esse romance. Nele, Mishima magnetiza o leitor, mas se encontra a meio caminho de um drama existencial e um inusitado thriller de espionagem.
Em Confissões de uma máscara, Mishima sai-se muito bem numa narrativa de cunho intimista em que o protagonista Koo-chan se vê às voltas com sua dubiedade sexual, angustiando a si, a quem por ele se apaixona e ao leitor nessa encruzilhada existencial. A obra, simbolicamente dividida em duas partes, sintetiza esse conflito, harmonizando forma e conteúdo.
Vida à venda segue outro rumo: envereda de forma acessória no drama de Hanio, num ritmo sincopado, em que intervém a trama das pessoas que atravessam seu caminho: seus clientes em seus próprios dramas, e entretecidos entre eles a organização secreta ACS que, num thriller policial, tem interesses dúbios nesse jovem anti-herói.
Essa síntese precária prejudica mesmo um maior investimento no perfil desse protagonista tão intrigante, blasé, arquétipo tão próximo dos Meursault e Joseph K. de Camus e Kafka, mas cujo passado e motivações mais profundas permanecerão para sempre ignorados pelo leitor.
Por fim, Vida à venda é obra de inquietante atualidade, não obstante tão reveladora do contexto no qual foi concebida e do estado de coisas do mundo que retrata. É uma leitura cujos elementos são próprios para cativar o leitor moderno, tão sedento pelo entretenimento, mas não é o ponto mais alto esteticamente falando de um escritor tão representativo de sua nação, a ponto de ter seu nome eventualmente cotado para o Prêmio Nobel de Literatura.
Não deixa de ser uma ótima porta de entrada para a literatura oriental.
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