Cardoso 11/02/2017
Evaldo Cabral de Mello, no posfácio da edição de 1997 da Companhia das Letras, diz que Raízes do Brasil, escrito como ensaio sociológico na "moda no bom sentido" dos anos 30, junto de Evolução Política do Brasil Prado Júnior Casa grande & senzala de Freyre, o motor da obra é, antes, buscar um conceito, uma teoria sociológica a fatos propriamente históricos -- daí algumas coisas observações assustadoras para os nossos dias, como a análise do racismo.
Acontece que isso não é desculpa alguma: uma teoria sociológica que, ao invés de se adaptar à realidade, a adapta é, ora essa, defeituosa. No limite, transformamos as narrativas pós-modernas e pós-estruturalistas em apologia de um trabalho ruim (que seria superado pelo trabalho de Holanda como historiador). Esse processo de "errar a mão" com um método sociológico pode acontecer, claro, com grandes teorias sociológicas: por exemplo, a aplicação do marxismo, que adiro, desenvolvido originalmente para o estudo do capitalismo, de forma acrítica na realidade brasileira gerou uma série de problemas de ordem científica e política... Acontece que este erro foi corrigido, notadamente, aliás, por nomes como Prado Júnior (que estava junto de Sérgio no "começo de nossa sociologia", por mais que essa visão seja simplificadora).
É esta obra o berço do paternalismo, notadamente pela figura do "homem cordial", que depois se popularizaria grandemente em outros nomes, como o de Raymundo Faoro em Os donos do poder. Nada de outro mundo: o brasileiro, herdeiro da cultura ibérica e colonizadora, não consegue estabelecer relações racionais próprias ao sistema político moderno de Estado; dominado de emotividade quase medieval, traria ao público suas relações privadas. Ao fim e ao cabo, nosso Estado é corrupto, violento e até anti-democrático por nosso "sangue", nossa "mentalidade"
Em que ponto, entretanto, essa leitura culturalista não nos impede de localizar os problemas reais do Brasil? A leitura da obra pradiana nos ajuda, nesse sentido, muito mais que este volume de Holanda: em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, observa que o verdadeiro impeditivo de nosso "desenvolvimento" para uma democracia e economia ao nível de países centrais do capitalismo está no sentido de nossa colonização, feita, ainda que tardiamente, como forma de extrair matéria-prima e mais-valor absurdos pelo trabalho escravo e por terras "sem dono", dentro do contexto da expansão marítima portuguesa em busca dos mercados. O nosso desenvolvimento, atendeu aos interesses da metrópole portuguesa quase sempre ignorando nossas necessidades. "Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes, depois algodão e, em seguida, café para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção que não fosse o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras (...)". (PRADO JÚNIOR, Formação do Brasil Contemporâneo) Nossa sociedade, então, não foi construída nem para nós, nem por nós. Ela foi nos entregue assim, à nossas classes dominantes entreguistas dentro do contexto do capitalismo dependente, tão bem analisadas por Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Ruy Mauro Marini.
Desassociando os erros do sistema capitalista e transferindo-os para uma distante mentalidade de um distante povo de outro continente, com validade de mais de 500 anos, transferidos ao nosso comportamento, difícil de mudar, buscamos um governo igual à grande e justa democracia estadunidense, normalmente, tão bem vista. Às vezes vemos coisas como Watergate ou a Invasão do Irã, mas o paternalismo parece não vê-los. Mirando na administração, por exemplo, prática e funcional de bancos, esquecemos dos escândalos de Wall Street tão bem demonstrado, por exemplo, pelo documentário Inside Job (dir. Charles H. Ferguson, 2010).
Podemos pensar, então, que, se o problema do Estado brasileiro foi e é nossa mentalidade, a diminuição dos meios da população acessá-lo pela democracia nos salvaria de nós mesmos... Mas eis que vemos que, na época colonial, o governo era o Português; posteriormente, endividado até o pescoço com a Inglaterra, passamos a trabalhar massivamente para o desenvolvimento do capitalismo inglês (tão bem estudado por Eric Williams em seu Capitalismo e escravidão; ainda que seu estudo seja sobre Trinidade e Tobago, pode ser aplicado em toda a América Latina); na República, as burguesias agrárias, que disputavam o pódio isoladas por bastante tempo, com o passar da Era Vargas, foi perdendo espaço para a industrial, ao mesmo tempo em que nosso capital se vertia aos EUA (principalmente com o golpe empresarial-militar que nos levaria à ditadura de 1964). O poder político, aparentemente, nunca esteve nas mãos do povo brasileiro, mas foi ocasionalmente gerido por ele a mando de terceiros: estando nossa economia tão bem vinculada à economias centrais, como poderíamos dizer que o problema de nosso Estado é nossa mentalidade e não o sistema econômico capitalista das democracias que o paternalismo tanto admira e vê como ideais?
O interesse de Raízes do Brasil, hoje, está em ser um documento influente que gerou uma ideologia pouco científica, admitida pelo próprio Sérgio historiador, que se incomodava com o pouco afinco histórico da obra, que deve ser combatido.