spoiler visualizarRubens 21/11/2011
Genocídio: A noção de errado para além da razão
Onde fica Ruanda? Vizinha a Burundi. Se você também não sabe onde o segundo país está, comece a leitura de "Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias: Histórias de Ruanda" pelo mapa na página 12, um livro com um título tão longo quanto boa a sua leitura, mas infelizmente uma obra não ficcional - ela trata do massacre real de oitocentas mil pessoas no pequenino país africano Ruanda.
Philip Gourevitch, escritor e jornalista estadunidense, a partir das notícias do genocídio em Ruanda em 1994 decide ir a campo em 1995 para esclarecer o tom explicativo no noticiário atribuindo ao caos e anarquia a morte em massa; parecia-lhe falso que tanta gente pudesse ser assassinada meramente por alguma fúria incontrolável e desorganizada. Genocídio, neologismo criado por Raphael Lemkin em 1943, constitui-se um ato calculado, organizado e deliberado de extermínio de um grupo populacional. Não à toa havia exortação pelo rádio e diziam os grupos hutus envolvidos: "vamos trabalhar", significando matar como atividade programada.
O livro que contém elementos de história oral e escrita, jornalismo e relações internacionais, aborda o conflito entre as duas principais etnias de Ruanda, hutus (90%) e tutsis (9%) que atinge o ápice nos cem dias de 1994 durante os quais foram mortas as oitocentas mil pessoas. Os hutus, munidos de armas de fogo, facões e de uma clava cravejada com pregos chamada de masu, atacam sistematicamente a população civil da etnia tutsi e aos próprios hutus moderados. É inevitável a comparação, se no Holocausto durante o nazismo câmaras de gás foram a solução técnica para a matança em massa, em Ruanda o facão é a resposta equivalente.
Gourevitch envereda pela linha mestra política e secundariamente econômica na explanação de motivos. A construção de uma idéia de separação étnica é plantada pelo colonialismo belga ao criar uma carteira de identidade étnica distinguindo as populações hutu, tutsi e twa (pigmeus), por sua vez relacionada a uma teoria equivocada do século XIX que estabelecia a superioridade dos habitantes da região da Etiópia pela ancestralidade caucasóide. Considera-se que os tutsis migraram dessa região etíope e assim seriam superiores aos demais. Posteriormente, na década de 1950 a idéia é instrumentalizada por facções hutus que contestam a liderança tutsi; eram duas nações sob o mesmo Estado político pois o pensamento de uma única coletividade-nação inviabilizou-se com aquela idéia de separação étnica.
Se Ruanda era atrasada tecnologicamente, o embate político ao contrário é sofisticadíssimo, as manobras na luta pelo poder humilhariam Maquiavel e não devem nada em complexidade e malícia a qualquer história de conflito. Há propaganda e contrapropaganda, assassinato de presidentes, infiltração em campos de refugiados, guerrilha, guerra civil, articulação de invasões a país vizinho - a República Democrática do Congo é riquíssima em recursos minerais.
São inúmeras as entradas para indagações e reflexões por parte do leitor e essa certamente é uma das características mais preciosas, a obra recebeu vários prêmios nos Estados Unidos e na Inglaterra, foi traduzida em doze idiomas. A pergunta porque um povo é capaz de assassinar o vizinho, amigo, colega de trabalho e de escola, faz par com a de porque um povo aceita com relativa passividade a própria morte.
O genocídio em Ruanda confirmou a incapacidade da comunidade internacional em cumprir satisfatoriamente com a Convenção de Genocídio da ONU, certamente avanços ocorreram em prevenção e resposta, mas insuficientes - vide Darfur-Sudão.
Atualmente Ruanda é presidida pelo general que comandou dezessete anos atrás a força militar da Frente Patriótica Ruandesa, responsável pela derrubada do governo hutu. Hoje, contra ele há acusações de censura e eliminação de adversários e críticos políticos, uma evidência da atualidade e pertinência da obra, ele é entrevistado e presença marcante na obra de Gourevitch.
A primeira edição (esgotada) de "Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias: Histórias de Ruanda" foi lançada em 2000, a edição corrente de 2006 está em formato de bolso, ambas publicadas pela Companhia das Letras.
Se a verdade para alguns já não é possível, Gourevitch no início do livro avisa que "... quando se trata de genocídio, ainda podemos distinguir o certo do errado."
Leitura obrigatória.