Rafael 25/11/2012
Resenha - "Qual Universo?"
Para análise completa, acesse: http://qualuniverso.blogspot.com.br/
Violência gratuita e desmedida praticada por animais fofinhos. Num primeiro momento, este parece o mote dessa melancólica história em quadrinho trazida à luz por Grant Morrison e Frank Quitely.
A parceria entre Morrison e Quitely é antiga, a dupla é responsável pelo arco que revolucionou os X-Men em 2001, por Batman & Robin de 2009, além da melhor história em quadrinho já escrita em minha opinião, que outros dirão apenas que é melhor história já escrita do Superman (All-Star Superman). Entretanto, em We3, apesar de haver um pé de super-heróis dentro dessa história, ela tem um caráter completamente autoral e experimental. Esse caráter experimental é possível notar, por exemplo, no modo como Morrison e Quitely desenvolveram suas páginas de forma a tentar proporcionar uma experiência ao leitor de tempo e espaço dos animais protagonistas, afinal We3 é uma história de perseguição.
Para além desse aspecto visual, é possível notar que a narrativa de We3 se dá pelos fatos, não existe um narrador. Existem apenas pessoas e animais agindo, fazendo coisas, dizendo coisas e está sobre as costas de quem lê tirar suas conclusões sobre o que está acontecendo nos quadros.
O título é uma brincadeira em inglês, idioma original da obra. Enquanto representa Animal Weapon 3, também diz respeito à uma fala recorrente dentro do vocabulário limitadíssimo desses animais: We 3 (Nós três).
Uma forma de começar a falar de We3 é falando sobre a questão de desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias e em como isso sempre se relaciona com a questão militar. Várias tecnologias que facilitam a vida das pessoas hoje, sem as quais não conseguimos viver sem, foram desenvolvidas inicialmente como projetos militares. Existe como se fossem níveis de acesso as novas tecnologias: Primeiro militar, depois industrial e por ultimo, pessoal. Sendo que a popularização só se dá, obviamente, no ultimo estágio. Um exemplo, talvez o mais famoso de todos, é o computador. Ele era inicialmente uma tecnologia exclusivamente militar e industrial, mas sua popularização e expansão se dão apenas quando vira uma tecnologia acessível a qualquer pessoa e como isso acontece? Se tornando entretenimento!
Em We3 a ideia é o desenvolvimento da biotecnologia, e esses estágios são muito claros, inicialmente o projeto é militar. Depois disso, quando o projeto militar corre risco de se queimar junto à mídia e a pressão popular, então o foco se volta para a indústria. Tem uma palestra no TED Talks, do físico e matemático inglês, Freeman Dyson onde ele comenta o futuro da biotecnologia, e nessa palestra ele fala que a biotecnologia só deixará de encontrar resistência popular quando se tornar um mercado de entretenimento (algo como, faça você mesmo, seu bicho de estimação!).
Outro ponto interessante é, 1 (o cão), 2 (o gato) e 3 (o coelho) são animais com consciências recém-adquiridas, e ainda assim, em minha opinião, salvo um personagem humano da história, eles são mais humanos que qualquer outro personagem. Os cientistas de Morrison em We3 são frios, cruéis, animais e digo isso mesmo em relação à doutora que solta os três bichos sem sequer pensar no impacto que isso poderia ter na vida de pessoas inocentes (apesar da cena onde ela se sacrifica ser bem bonita). Os militares de Morrison e Quitely são meras maquinas de cumprir ordens e os políticos são amorais. Enquanto que 1, 2 e 3 cheios de apego a vida, laços de amizade muito fortes e questionamentos morais. É muito legal o questionamento constante do cachorro se ele é bom ou mau, sua vontade de se submeter à autoridade dos seus criadores, as suas regras e a contraposição do gato, que é hostil a qualquer forma de autoridade.
Por se tratar de experiências com animais, é possível pensar também na questão ética em torno disso, já que animais são usados para experiência em vários mercados além da ciência, como o de cosméticos. Existe hoje um tipo de movimento em favor de uma extensão do conceito de direitos humanos, para os demais animais (chamado de direitos dos animais). Apesar de ser a favor de penas duras em pessoas que maltratem animais domésticos (ou de outros tipos) por simples sadismo, não sou a favor deste conceito de direito dos animais. Porque a presunção da ética aplicada aos seres humanos está no fato de nós podermos (ainda que na imensa maioria das vezes não aconteça) agir de forma livre. O que isso significa? Apesar de existir todo tipo de pressão sobre as pessoas, sejam pressões biológicas, sejam sociais existe no ser humano, em certa medida, uma autonomia de tudo isso. Por exemplo, existe uma diferença imensa quando um ser humano mata outro ser humano (ou outro animal), do que quando, por exemplo, um leão mata outro leão ou uma zebra (ou outro animal). Você pode pensar claro, o leão mata apenas pra se alimentar ou se defender ou proteger seu território e o homem mata por qualquer razão, isso não está errado, mas esse pensamento significa, em suma, que o leão age puramente por instintos, ele não poderia agir de forma diferente da que ele age. Um leão mata, mas não assassina, isso porque ele não tem sequem condições de pensar nesses termos, não existem bom ou mau nas ações do leão. Já com o ser humano não, você é um imbecil por opção, por escolha e daí surge o questionamento ético, da possibilidade de agir de outra forma. Porque se não existe escolha, então não existe questão moral envolvida. E em We3, é legal que tão rápido os animais ganham resquícios de sofisticação intelectual, automaticamente surgem questões éticas.
Tanto que trocado os animais de estimação por seres humanos, o que é We3? Uma história que narra à trajetória de três indivíduos que, apesar de não terem nada em comum entre si, se tornam amigos enquanto eram mantidos em cativeiro. Três indivíduos que foram sequestrados por agentes do governo e que são vitimas de sessões de testes com implantes cibernéticos e treinamentos e que são transformados em armas letais para o uso do governo do EUA.
Enfim, We3 é considerada um dos trabalhos mais acessíveis de Morrison, no sentido de inteligível e desde sua publicação ganhou praticamente um status de clássico. Não sou muito um leitor da Vertigo, eu particularmente gosto dos quadrinhos de super-heróis (uma das nossas ultimas grandes invenções, segundo o próprio Morrison) e a Vertido é famosa por se distanciar desse estilo de quadrinhos em nome de histórias mais adultas. Porem, por vezes, quadrinhos adultos não significa mais que violência e sexo, coisas que particularmente não me interessa numa história em quadrinho. Uma obra adulta, pra mim, é aquela que é capaz de te fazer pensar para além do óbvio, que tem significados que transcendem o papel e a tinta. E nesse sentido We3 é uma obra adulta, interessante e inovadora.