Coruja 27/03/2012Esse mês foi da Tatá no Clube do Livro e ela elegeu por tema "livros polêmicos". Assim é que nos preparamos, indicamos, votamos e acabamos por ler O Senhor das Moscas, do nobel William Golding.
Tudo começa com um bando de garotos que após um acidente, acabam por ficar presos numa ilha deserta. Você é capaz de entender que está acontecendo uma guerra - no primeiro capítulo, há uma menção breve à bomba atômica ("Você não ouviu o que o piloto disse? Sobre a bomba atômica? Estão todos mortos.") - os garotos, de idades entre seis e doze anos, estavam provavelmente sendo transportados para algum lugar em que ficassem seguros, mas o avião teve uma pane, ou foi bombardeado, caiu na ilha e todos os adultos morreram, só sobrando os trinta meninos.
Os garotos têm de se virar sozinhos e, num primeiro momento, tudo é uma festa: sem supervisão de adultos, numa pequena ilha que é toda deles para explorar, com frutas e água fartas... os dias são passados mergulhando em piscinas naturais, construindo castelos de areia e simplesmente aproveitando a liberdade que como jovens e respeitáveis futuros cavalheiros ingleses, eles não estão acostumados a ter.
Três personagens se destacam a princípio: Ralph, que será votado líder do bando; Porquinho, um menino gordo, que sofre de asma e usa óculos e Jack, o líder do coral. Cada um deles é representante de uma faceta humana. Porquinho, de quem nunca chegamos a saber o nome e é vítima constante de bullying de todos os outros personagens, representa a cultura, a inteligência, a civilização - é ele quem se preocupa com as questões práticas, como a necessidade de construção de abrigos. Ralph é um líder nato e desde o primeiro instante se destaca por seu carisma - os outros o seguem naturalmente, sem questionamentos. Jack, por sua vez, é o poder, a força, e a selvageria. Embora se submeta de início ao carisma de Ralph, pouco a pouco ele vai se libertando de sua camada de 'civilização' e se tornando cada vez mais violento, mais selvagem.
A princípio, eles conseguem manter uma espécie de ordem, um ranço de civilização. Mas logo a coisa começa a se degenerar e, naquele confinamento forçado, a idéia de individualidade, de razão dilui-se na figura do monstro na floresta, na caça aos porcos, no clamor pelo sangue.
Nessa sociedade primitiva que os garotos começam, há duas regras essenciais: manter a fogueira sobre o monte mais alto da ilha, para assegurar a possibilidade de que sejam vistos e resgatados e em suas reuniões de organização, esperar pela posse da concha, que representa sua vez de falar.
Não demora para que as duas regras sejam quebradas - e quando a fogueira apaga exatamente quando um navio está passando, porque Jack comandou os gêmeos que estavam guardando o fogo para participar da caçada aos porcos selvagens, então está pronto o palco para a implantação do caos.
A desintegração dessa tentativa noção de ordem é ainda mais opressiva porque ocorre no exato momento em que Ralph se dá conta da importância que ela tem - e é terrível ver como as coisas terminam após a reunião noturna.
A intenção de Ralph é fazer os outros verem a necessidade de cuidar do fogo, porque essa é sua única chance de retorno à civilização. Não demora, contudo, para que suas palavras sejam esquecidas e todas as mentes se voltem para o medo da besta - algum tipo de criatura que os pequenos insistem já ter visto. A razão dá lugar ao medo - monstros, fantasmas - e isso fortalece Jack, que canta enquanto sangra o porco que sacrificou.
E nessa cacofonia de selvageria, os únicos que tentam se sobrepôr são Porquinho ("O que somos? Humanos? Ou animais? Ou selvagens?"), Simon (Simon não conseguiu falar, no seu esforço de exprimir o mal essencial da humanidade) e o próprio Ralph. Dos três, Ralph é o único que é ouvido - ninguém respeita Porquinho, com sua gordura, sua miopia e sua asma e Simon é tímido demais para fazer frente aos outros. Mas Ralph não é o suficiente diante da força de Jack - o poder que lhe é concedido por ter sido aquele capaz de matar, aquele que degolou o porco - fará dele mais tarde não apenas o provedor de carne, mas também assassino e deus.
É assustador. Não apenas pela situação que se desenha ao longo do romance - em que a individualidade cada vez mais dá lugar à turba irracional, ordem e lei são substituídas por sangue e sadismo - mas pelas perguntas que ela evocam. A situação em que os meninos se encontram é exatamente aquela de que Hobbes fala em seu O Leviatã: o estado natural do homem é a guerra uma vez que não existe um governo que estabeleça ordem. Nesse sentido, sendo todos os homens iguais em seu egoísmo, a ação de um só encontra limite pela força do outro - o homem é o lobo do próprio homem e é por isso que abrimos mão de parte de nossas liberdades para que possamos ter um governo que nos ajude sobreviver a nós mesmos.
A pergunta que fica aqui então é se revertendo a uma forma primitiva de vida - deixando a civilização - existe uma regressão ao estado de selvageria ou estamos diante da verdadeira face natureza humana?
Sentei com esse livro, de início, pensando em ler apenas os três primeiros capítulos e fazer anotações, seguindo o calendário semanal de leitura do clube... mas acabei lendo metade, escrevendo notas e mais notas, dizendo que ia dormir depois... e esquecendo então de dormir para ler o resto. Ele é absolutamente mesmerizante em seu retrato de crueldade.
O pior é perceber que Golding não está tão longe da realidade em sua ficção. O Senhor das Moscas incomoda principalmente pela consciência de que ele está perto demais do alvo em sua crítica: a idéia de que a sociedade é corrupta porque sua base, a humanidade, é inerentemente má.
Ele está bem longe de ser uma fantasia...
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)