RayLima 01/11/2023
O fim da inocência
Marguerite Duras foi uma romancista, novelista, roteirista, poetisa, diretora de cinema e dramaturga francesa, sendo considerada uma das principais vozes femininas da literatura do Século 20 na Europa. Suas obras são quase todas autobiográficas, ela se baseia em suas experiências e na vida nada fácil que ela teve, mas sem apelar para o melodrama.
?O amante?, lançado em 1984 e ganhador do Prêmio Goncourt do mesmo ano, é um de seus livros mais conhecidos, tendo até mesmo ganhado uma adaptação cinematográfica em 1992. Nele, Marguerite vai contar sobre o caso que teve com um homem chinês ainda em sua adolescência quando morava na antiga Indochina francesa (hoje Vietnã). Ele, herdeiro de um rico comerciante chinês e bem mais velho que ela, uma menina francesa, a filha do meio de uma modesta professora do primário.
Marguerite cresceu num núcleo familiar totalmente desajustado. A mãe se tornou viúva quando ela tinha apenas 4 anos e investiu todo o dinheiro deixado pelo marido em campos de plantação de arroz que arruinados pela chuva constante nunca lhe deram retorno. Com 3 filhos para criar, seu salário de professora não era suficiente, eles viviam uma vida quase miserável, sendo marginalizados tanto em relação aos nativos quanto aos franceses da colônia. O relacionamento conturbado entre os membros dessa família era uma tragédia tão grande quanto a pobreza, a mãe nunca escondeu a predileção pelo filho primogênito, causando uma mágoa irreparável nos outros dois.
?Eu queria matar meu irmão mais velho, queria matá-lo, ter razão contra ele uma vez, pelo menos uma única vez, e vê-lo morrer. Era para retirar da frente de minha mãe o objeto de seu amor, esse filho, puni-la por amá-lo tanto, tão mal, e, sobretudo, para salvar meu irmão mais moço, achava eu, meu irmãozinho, minha criança??
É nesse contexto que temos Marguerite, ainda menina, mas com a certeza de que seria a primeira a sair dali. Seu maior desejo era voltar para a França e se tornar escritora. Então, quando tinha 15 anos (e meio), ela o conhece, o amante. Se no começo ela se entregou a ele pela curiosidade e pelo dinheiro, ela continuou, por tanto tempo, para receber dele o amor que lhe era negado em casa. E era por esse amor que ela aceitava os nomes que lhe davam na rua e em casa, por se entregar a um homem mais velho, rico e sobretudo, chinês. A união deles era um absurdo para ambos os lados. A família dela jamais aceitaria que ela, branca, se casasse com um chinês. Da mesma forma o pai dele, rico, jamais aprovaria que seu herdeiro se casasse com uma menina pobre.
?Muito cedo foi tarde demais em minha vida. Aos dezoito anos, já era tarde demais.?
Confesso que esse livro me causou um pouco de incômodo pelas descrições do relacionamento de uma adolescente com um homem adulto, principalmente nas cenas de sexo. Mas em nenhum momento a autora normaliza isso e deixa bem claro todo o contexto em que isso acontece. Ela era uma criança pobre, negligenciada pela mãe e viu naquele homem uma oportunidade de melhorar sua vida e também a de sua família. Pois apesar de tudo, ela tinha pena de sua mãe e principalmente de seu irmão mais novo, com quem ela tinha uma forte ligação. Apesar desse incômodo, jamais tiraria o mérito da autora, pois sei que essa história não pode ser analisada superficialmente, para além do relacionamento entre uma menina e um homem, esse livro é sobre uma menina que precisou amadurecer antes do tempo. Ela precisava se salvar do destino que lhe era imposto pelas circunstâncias.
?Não que precise chegar a alguma coisa, o que é preciso é sair de onde estamos.?
A autora nos faz ter sentimentos conflitantes exatamente como a protagonista sentia em relação a sua família e ao seu amante. Gosto disso. A vida é exatamente assim, as coisas e as pessoas não são ?preto no branco?, são as áreas cinzas que fazem a realidade. E é por isso que esse livro é um clássico.