spoiler visualizarfabio.ribas.7 11/06/2024
O Duplo
O que há de comum entre o primeiro livro de Dostoiévski, “Gente pobre”, e seu segundo, “O Duplo”? Este segundo foi lançado apenas duas semanas depois do primeiro livro, que causou grande impacto positivo no público e na crítica. Poderia dizer que ambos tratam da realidade social da Rússia daquele tempo. Contudo, o personagem principal do segundo livro se encontra numa situação financeira melhor que os personagens de “Gente pobre”. O “nosso herói”, expressão sempre trazida pelo narrador de “O Duplo” para se referir ao senhor Golyádkin, tem casa própria, um bom salário e um empregado que o serve. Mas, na hierarquia social, sua profissão é uma das mais baixas do setor público da Rússia. Assim, a trama se desenvolve também no desejo do personagem em ascender socialmente.
Queria começar dizendo que, ao contrário de muitas críticas que li, eu amei o livro! Fiquei muito envolvido com a história e sua crescente tensão. Lembrei-me de “O castelo branco”, de Orhan Pamuk. E tentei recordar de quantos romances e histórias sobre personagens que encontram um sósia impregnam nossa imaginação literária. “O príncipe e o mendigo” é clássico, não? Dostoiévski, porém, escreve uma história genial e muito diferente de seu primeiro livro. Talvez, por isso mesmo, seus leitores e seu tempo não estivessem preparados para o que encontramos aqui.
Afinal, o que está acontecendo? Verdade ou mentira? Sonho ou loucura? O livro começa nos apresentando uma posição dúbia. Seguimos, depois, para um encontro do “nosso herói” com seu médico e vemos, a partir desse diálogo, que Golyádkin tem certos problemas de adequação social. Este médico irá retornar na sombria cena final do livro. O fato é que Golyádkin, após sua parada no consultório médico, vai à festa em que pretende pedir Clara em casamento. Entretanto, chegando lá, descobrimos que ele não fora convidado (estranhíssimo, não?). Há uma sequência de patetices nessa festa que me lembra aquele filme “Um convidado bem trapalhão”, com Peter Sellers. Eu fiquei com vergonha alheia do personagem. Por fim, ele é expulso de lá. Seria aqui, num personagem já fragilizado, que a loucura se instalaria? Você já passou por vergonhas tão intensas que sua mente se desassociou de si mesmo? Seria isto que veríamos ocorrer neste romance de Dostoiévski?
E se não conseguimos ser quem almejamos? Se, tão tragicamente, levantam-se contra nossos planos a Providência e tudo parece, enfim, vir na contramão deste verso paulino: Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito (Rm 8:28). O senhor Golyádkin não fora convidado para a festa, não fora chamado e, portanto, não há propósito algum que o guie a bom termo. Todas as coisas NÃO cooperam para o bem do nosso herói, pois ele perde sua pretendente, perde não apenas o novo cargo que almejava, mas perderá seu emprego também, ele perde a dignidade. A pergunta é se Golyádkin não está perdendo a própria sanidade? Agora nos aparece o Duplo, alguém não somente muito parecido com ele, mas que carrega até mesmo seu mesmo nome. Loucura? Verdade? Embora ocorra um primeiro momento de boa interação entre os dois, veremos que o aparecimento do Duplo só irá lançar “nosso herói” numa tragédia cada vez pior.
O livro foi fascinante e muito angustiante para mim. O Duplo é um personagem insuportável e, pior, é um personagem que encarna tudo o que “nosso herói” não é, mas deseja. O Duplo é afável, carismático e comunicador. Assim, o Duplo vai tomando espaço na vida e no trabalho de Golyádkin. Contudo, na vida não poderemos ver “dois”, ainda que gêmeos, ainda que sósias, num mesmo espaço. Alguém terá que perder nessa concorrência.
Sonho ou loucura? Um personagem tragicômico é o “nosso herói” Golyádkin. O que Dostoiévski pretendia com esse livro? As explicações são as mais diversas entre os críticos e leitores deste livro. Repetirei a minha própria explicação dada mais acima: a loucura nos vem quando tentamos ser quem não somos! E a falta de resiliência transforma a todos e a própria Providência divina em inimigos num surto de paranoia. Golyádkin, desde o início, não queria ser quem ele era. Preocupava-se excessivamente com olhar alheio sobre si mesmo. Tentou e não conseguiu. Viu a si mesmo e, ironicamente, também não gostou do que viu no “Golyádkin segundo”. Seu Duplo era tudo o que ele gostaria de ser, mas, no fim, seu Duplo, este seu “outro”, foi sua própria destruição. Para mim, este livro é uma obra de arte.
Fábio Ribas
site: https://revfabioribas.blogspot.com/