Fabio 05/03/2024
"Os sentimentos indizíveis do coração"
"A Leste do Éden" (John Steinbeck), Obra-Prima da literatura americana, laureado com o Nobel em 1962, é motivo de controversas críticas até os dias atuais, porém é indiscutível, que se trata de uma obra de altíssima qualidade literária, e que por muitos é considerado o "vade-mécum" americano, que figura constantemente em listas de obras mais influentes do século XX.
Steinbeck, narra em "A Leste do Éden", os remansos e intempéries de duas famílias americanas, e nos conta através das figuras míticas, a epopéica saga de duas famílias do campo em busca de paz e redenção, sobretudo, a incansável escrutínio em busca da fé em Deus e no próprio homem.
Embora alguns capítulos sejam ambientados em outros estados americanos, o cenário principal de "A Leste do Éden", é o famigerado Vale de Salinas, na Califórnia, e o enredo transcorre entre a Guerra Civil Americana até o fim da primeira guerra mundial.
Alternando entre primeira e terceira pessoa, através do olhar das gerações de "Trasks e Hamiltons", e sob perspectiva do próprio Steinbeck (que era neto de Samuel Hamilton), somos abarcados em uma transposição moderna do Livro de Gênesis, no reconto da aparição da "serpente", da Queda de Adão e Eva, e da funesta rivalidade entre Caim e Abel. O destino entrelaçado das duas famílias, culminará no apogeu simbólico de uma narrativa real recôndita no ficcional.
"A Leste do Éden" adentra e nos mostra inicialmente a chegada dos imigrantes irlandeses, Samuel e Liza Hamilton a um pedaço de terra infértil do Vale de Salinas, e descreve de forma fugaz, desde o período da posse à criação de seus nove filhos, percorrendo cada um deles, num elencar dos principais atributos e os acontecimentos que moldaram a personalidade de cada um. Após, somos conduzidos pela a odisseia dos Trask, através do patriarca Cyrius, e dos filhos Adam e Charles, que, de mães diferentes, convivem em uma fazenda árida e pedregosa em Connecticut, regidos sempre pelo olhar severo do pai, o homem cruel que cometeu o fatídico "pecado original" determinante para todo o desenrolar da crônica.
Paralelamente ao enredo principal, Steinbeck, nos conta a história de Cathy Ames, uma mulher sem escrúpulos, fria e calculista, que, desde criança, utiliza de sua sexualidade para controlar e manipular os desafortunados homens que passam pelo seu caminho, e que ao desenvolver a sua capacidade natural de não manifestar suas emoções, disfarçando-as a seu bel prazer, acaba por distorcer tudo a sua volta, enredando a todos em suas teias de mentira e enganação. A "Serpente", após uma série de infortúnios, entrelaça seu destino aos dos jovens, Adam e Charles.
A maior parte de "A Leste do Éden" é contada através dos olhares do sábio e caloroso, Samuel Hamilton, e do benevolente e sonhador, Adam Trask, e o desenrolar dessa relação. A partir desse ponto, somos lançados ao enlace de ambas as histórias, e acompanhamos resultado de uma profunda e verdadeira amizade, entre os dois protagonistas e a prole dessa amizade, é o que determina os rumos futuros da fabula. Durante esse período, nos deparamos com Lee, um ecônomo de origem chinesa. Apesar de inicialmente parecer se encaixar no estereótipo do empregado das famílias abastadas da Califórnia, se revela, na realidade, um indivíduo sábio e sofisticado, que demonstra um genuíno compromisso com os protagonistas e, que por meio de sua amizade verdadeira, torna-se o elo que conecta a todos.
John Steinbeck, nos entrega um livro cíclico, em que os personagens estão em constante evolução e desenvolvimento dentro da própria narrativa, como em um romance de formação, entretanto, com uma distinção, os personagens de "A Leste do Éden", não são capazes de aprender com os erros do passado, permanecendo no lapso, persistindo nos mesmos padrões, típico dos indivíduos narcisistas.
De caráter realista, embebecido em nuances existencialistas, "A Leste do Éden", a priori, é um livro insultuoso, que ecoa e estronda e nos remete a olhar para o nosso interior. Olhar para as nossas misérias, as nossas inquietações, as nossas frustações. Nos incita a olhar, principalmente para os vícios que nos corroem, o egoísmo, o orgulho e a arrogância, e tudo mais que nos arruína. Nos faz enxergar nos personagens o que é intrínseco da natureza humana universal, e que foi maculada com o pecado original, mas que ao depreender aquilo que nos everte, também nos faz assumir aquilo que no eleva e no torna melhores. E somente quando nos desvencilhamos dessa cortina perniciosa, que podemos enxergar a caridade, a paciência, a tolerância e tudo mais que é inerente a criação original.
"A Leste do Éden" é um livro de composição requintada e lírica, escrita inexorável, que não possui falhas ou incongruências, tanto de estilo, quanto de estética, visto que, é extremamente uníssono, fluido e preciso. Steinbeck, nos entrega um belíssimo texto repleto de alegorias bíblias e idiossincrasias, que cunhado em tons melancólicos nossa remete a reflexão interior em busca da tradução dos sentimentos indizíveis do coração.
Em suma, "A Leste do Éden" é um livro tocante, que nos emociona, nos encanta, mas que também nos estarrece e nos convida o tempo todo a nos colocar na pele dos personagens, e a sentir os receios, os temores, as alegrias e tristezas, e que de forma tácita nos suplica a olhar para o próximo como gostaríamos de ser olhados. Livro que impacta, arrebata, exalta e enaltece o leitor com simples parágrafos de pura sinceridade real e palpável.
O quadro inicialmente era branco, e nos primórdios, pintado em tons de cinza, e que aos poucos vai ganhando cor e tonalidade claras e brilhantes durante o trajeto, mas que, por vezes a paleta escura, irredutível, obscurece, entalha e oprime, levando tristeza e dor, onde deveria haver alegria, mas aos poucos podemos sentir a mão forte, a destra do Amor inefável segurando o pincel , levando intensidade ao matizar aquilo que era cinza, mas que originalmente era somente alvo, sem maculas, e nada mais.