Flávia Menezes 05/02/2024
A LESTE DO ÉDEN NÃO HÁ SÓ O BEM E MAL. MAS NOSSA HUMANIDADE.
?A Leste do Éden? foi publicado em 19 de setembro de 1952, e é o romance mais importante de toda a carreira do americano John Steinbeck, cuja ideia surgiu como uma necessidade do autor em deixar por escrito para os seus dois filhos, Thorn e John, a história familiar dos Steinbeck (alguns fatos neste livro são autobiográficos), e também importantes ensinamentos que os ajudariam a amadurecer e criar valores essenciais, ao lhes contar a história por trás de todas as histórias: a da humanidade.
Mas a verdade é que escrever esse romance não significou apenas uma forma de fazer com que seus filhos tivessem acesso à história dos seus ancestrais. Ao longo do processo, escrever este livro acabou se tornando um bom exercício terapêutico para Steinbeck, ou uma forma de ressignificar os momentos difíceis pelos quais ele enfrentava, já que nesta época ele enfrentava o luto pela morte de um grande amigo, e um doloroso pedido de divórcio, após ter sido traído pela esposa.
Cada um desses elementos tão carregados de memórias e emoções, podem ser sentidos em cada uma dessas 685 páginas que se seguem, e dão vida a um dos maiores clássicos já escrito em todos os tempos, e que deveria ser lido por todos os amantes da leitura, mesmo aqueles que não estão familiarizados com os clássicos, já que neste, Steinbeck emprega uma linguagem bem simples, que acaba por nos atingir mesmo sem percebermos.
Nesta ambiciosa saga que se passa no Vale dos Salinas, o autor nos traz de um lado a família dos Hamiltons (que é o retrato da história da ancestralidade do Steinbeck), e de outro, os Tracks (que são o lado simbólico da sua família), e que ao se encontrar, dão início a uma história repleta de significados e simbolismos, que nos proporcionará uma infinidade de reflexões.
Antônio Cândido, sociólogo, crítico literário, professor e pesquisador da literatura brasileira diz que: "O homem tem a necessidade da fabulação, porque ele é um complemento da vida. (...) Ele (o homem), lendo poesia, lendo história de fadas quando é menino, lendo romances quando é grande, aquilo vai se armazenando nele, e vai enriquecendo a maneira dele ver. Sem querer, quando ele vê a realidade, ele está vendo as coisas que ele viu na ficção. A criação ficcional nos integra. Ela passa a ser um componente da nossa visão do mundo, da nossa maneira de ser". E é exatamente o que esse livro faz!
Nesta história ninguém é 100% bom, mas é certo que em alguma medida, todos possuem o mal dentro de si. Mas (para mim), e por todo um discurso do narrador, de que antes de julgar a crueldade e maldade de um personagem devemos nos lembrar do ?quem nunca pecou que atire a primeira pedra?, essa não é uma história apenas para nos lembrar de que todos nós somos maus. Mas ela vem mesmo é para nos lembrar que acima de tudo, somos humanos e sujeitos a falhas, exatamente por não sermos perfeitos, e logo, nunca seremos mesmo 100% bons.
Muito embora eu tenha dito isso, de fato, apenas uma das personagens deste romance tem dentro de si apenas o mal. Mas essa polarização tem uma importante função.
Apesar de representar a face do mal, não podemos atribuir a ela nenhuma culpa por um ato destrutivo cometido por qualquer outro personagem, mesmo que ela exercesse algum tipo de poder sobre eles. Afinal, o fato é que não é porque somos bons que o mal nos corrompe. Mas por conta da nossa inclinação a fazer o mal.
E é exatamente por isso que, por mais cômodo que seja atribuir uma culpa a alguém, a verdade é que só podemos culpar a nós mesmos, porque fazer o mal é uma escolha da qual ninguém deve se isentar da culpa por tê-la feito.
Além do bem e do mal, uma outra dualidade que surge na história é o da religião x capitalismo (dinheiro).
Enquanto os Hamiltons tinham por princípio colocar as suas invenções à serviço de outros fazendeiros, e não unicamente na busca por enriquecer, Charles Trask é um fazendeiro que vive unicamente para o trabalho, apenas para enriquecer cada vez mais, fazendo jus a um ditado que já foi muito atribuído aos agricultores americanos de ?live poor and die rich? (viva pobre, e morra rico).
Aqui, Steinbeck nos apresenta uma nova faceta do mal, quando traz a ganância que se apoderou de Charles. O que é bem diferente da ambição de Caleb, que tem por trás uma intenção mais nobre.
De fato, é muito comum a confusão de achar que ter ambição é ruim. Na verdade, a ambição é uma fonte propulsora para melhorarmos e nos desafiarmos a ir além, e alcançar o sucesso dos nossos projetos. O que é bem diferente da ganância, onde a satisfação não está em alcançar sucesso, mas no quanto mais se tem, mais se quer.
O mal é parte da nossa essência, e ler esse livro nos fará questionar sobre o que temos feito de bom? Será que estamos vivendo uma vida com propósito, ou estamos apenas ficcionados em enriquecer? Qual é o legado que estamos deixando com a vida que vivemos? E é ao final de todas essas belas e profundas reflexões que o autor nos faz, que nos deparamos com a palavra ?timshel?.
Enquanto ouvia a análise crítica do livro feita pelo canal/podcast ?The CodeX Cantina? (formidável a análise desses dois!), compreendi que ?timshel? (?você pode?, ou ?você poderá?) é a saída sábia para o nosso mal do ?e se? que tanto paira na nossa mente. Essa é a típica pergunta errada! Não adianta nada ficar se questionando ?e se eu fosse por ali??, ou ?e se eu fosse por aqui??, ou ainda, ?e se eu tivesse ido por ali??. A vida é feita de escolhas, e o "e se" é uma verdadeira erva daninha que se apodera do nosso coração, no qual timshel é a solução.
E eu confesso que foi aqui que Steinbeck me deixou arrepiada! Ao trazer a questão bíblica das maldições hereditárias que atualmente são levadas tão à sério pelas pesquisas da epigenética, ele nos mostra que existe uma solução possível para a quebra das repetições dessas maldições que tanto assolam as nossas famílias, e que (inclusive!) é um movimento (importantíssimo!) utilizado no processo psicoterapêutico desenvolvido pelo alemão Bert Hellinger para lidar com muitas questões de entraves e paralisias em nossa vida (quando a vida parece que não anda, e nada dá certo.).
Mas, isso eu não vou te contar. O próprio Steinbeck lhe dirá ao final desse romance. Porque é preciso vivenciá-lo, para compreender a importância desse toque capaz de nos libertar das más inclinações herdadas da nossa ancestralidade, e tentar viver uma vida conscientes do quanto somos maus, mas de que isso não nos impede de sermos melhores.