rafa 05/11/2010
A diferença de Solar em relação a todos os outros começa pelo tom de sátira para tratar de um tema tido como trágico por muitos ecologistas. Outra distinção está na estrutura, solta e desprovida da costura fluente das ações que fez a glória recente de McEwan. Ele se divide em três partes, cada uma correspondente a um ano: 2000, 2005 e 2009. Nesse meio-tempo, o pano de fundo – o aquecimento global – vai piorando, ao passo que a história esmorece. Assim, a primeira seção contém mais reviravoltas e crueldade. As demais trazem desdobramentos dos atos cometidos no início.
O romance pode ser lido tanto como farsa como apólogo moral. Conta as aventuras nada edificantes de Michael Beard, físico de meia-idade que vive da fama passada. Havia 20 anos, ele tinha ganhado o Prêmio Nobel de Física pela formulação de uma lei que mais tarde seria chamada de Conflação Beard-Einstein. Sua contribuição foi ampliar o papel da radiação atômica, mas ficou nisso. Com o passar dos anos, o cientista colecionou honrarias e convites para chefiar departamentos. Mas nada fez de novo. No ano 2000, ele está deitado nas glórias passadas. Trabalha no Centro Nacional de Energia Renovável em Reading, Inglaterra. Ali, comanda o projeto de uma turbina eólica. Não se esforça em progredir na pesquisa: sabe que, quanto mais ela se arrastar, mais poderá estender sua sinecura. Sob seu comando está uma equipe de pós-doutorandos, que ele não distingue muito bem. Para Beard, todos têm entre 25 e 29 anos, são magros e altos e usam rabos de cavalo. Um deles, Tom Aldous, dá-lhe às vezes carona e, no percurso, expõe seus temores quanto ao calor global e às ideias para produzir um gerador à base de fotossíntese artificial. Beard finge interesse. Mas só pensa em sexo. Sua quinta mulher, Patrice, tem um caso com um certo Rodney Tarpin, pedreiro grandalhão que trabalhou na reforma do banheiro da casa em Londres – e deixou ferramentas num quarto da casa. Beard não pode fazer nada, porque a traiu diversas vezes, e ela descobriu. Enquanto Patrice se atira alegremente nos braços de Tarpin, o marido se remói de ciúme e chega ao ridículo de fingir que recebe uma visita feminina à noite, para impressionar a mulher. Tenta até desafiar Tarpin em um encontro, mas leva uma sova.
Nessa altura, recebe um convite para visitar um fiorde no Polo Norte com um grupo de artistas. Ao se imaginar devorado por um urso-polar e “ver o aquecimento global de perto”, percebe quanto as pessoas em geral, e os artistas em particular, são impotentes diante do derretimento das geleiras. Ao desembarcar em Londres, sua degradação moral encontra novo combustível. Surpreende na sala de estar seu orientando, Tom Aldous, estirado negligentemente em seu sofá, vestido com seu roupão, tomando café. O jovem tenta se explicar, se diz vítima das ameaças de Tarpin e propõe que os dois se unam em nome da salvação do planeta. Enquanto pede clemência, Aldous escorrega em uma pele de urso-polar, bate a cabeça na mesa de centro e morre. Em vez de chamar a polícia, Beard simula pistas para incriminar Tarpin – coloca o martelo do pedreiro perto do cadáver – e sai de mansinho, para se enfurnar na Biblioteca Britânica. Lá, recebe o telefonema desesperado de Patrice.
Tudo começa a dar certo para Beard. As circunstâncias enobrecedoras só servem para fomentar a cupidez do anti-herói picaresco. O rival Tarpin é julgado e condenado a apodrecer na prisão – pena que Beard considera leve. Ele rouba a invenção do outro rival, Aldous, patenteia o gerador com fotossíntese artificial e monta uma empresa nos Estados Unidos. Mas a sorte de nosso vilão tem limites. Convém ir até o fim para entender a não moral da história, porque sempre há desforra nas narrativas de McEwan.