Ana P. Maia 22/01/2018
O poderoso chefão - The Queen's Castle
Se esse Duque pudesse fazer uma oferta realmente irrecusável, sem dúvida ela seria “leia esse livro”. Para quem gosta realmente de literatura, seria uma oferta que não se poderia recusar. E não importa se o leitor já assistiu a adaptação cinematográfica de “The Godfather”, ainda que não tenha gostado do filme (isso é possível?). O livro em questão foi adaptado em uma trilogia, não reproduzido fielmente em um filme. Considero importante destacar o que é adaptação de verdade e o que é criação livre dos roteiristas (que, carinhosamente, eu chamo de “fanfic” por não ter relação com a obra original, exceto as personagens). O segundo filme adapta o trecho que o enredo narra sobre o passado de Vito Corleone. Todo o primeiro filme é adaptação do livro e, cronologicamente, o livro termina exatamente ao fim desse filme. Ou seja, toda a história cronológica posterior ao fim do primeiro filme (basicamente, o enredo do Michael Corleone no Segundo filme e todo o Terceiro filme) não é “adaptação”, mas criação livre dos roteiristas.
A adaptação cinematográfica de “O Poderoso Chefão” é meu filme favorito e é considerada uma das melhores adaptações de livros já feitas. Tal fato dificulta muito o trabalho de resenhar o livro original. Afinal, todos já assistiram ao filme, certo? Quem não assistiu, assista, as adaptações são realmente sensacionais. Conseguem retratar praticamente toda a história com grande fidelidade e grau absurdo de detalhes, além de contar com atuações magistrais de Marlon Brando, como Don Vito Corleone e os (então) jovens Al Pacino, como Michael “Mike” Corleone, Robert Duvall, como o consiglieri Tom Hagen, e Robert De Niro como o jovem Vito Andolini/Corleone (já na sequência, “The Godfather, part II”). Partindo desse fato, a primeira pergunta que devemos responder é: se a adaptação cinematográfica é tão boa, por que alguém deveria gastar alguns dias de sua vida lendo o livro? Principalmente para alguém que não tenha gostado do filme.
Pois bem, apesar de ser uma grande adaptação, bem fiel e detalhada, e ter duração superior a três horas (somando-se ainda ao bom tempo que o segundo filme dedica a narrar o passado de Vito Corleone), é impossível para o cinema retratar tudo que o livro narra. O filme retrata bem a história, mas, com a quantidade de histórias paralelas, muita informação é perdida por ser difícil de o espectador acompanhar tudo e/ou relacionar o nome do personagem ao ator que o interpreta (os atores são antigos e aqueles que ainda são famosos eram jovens, à época). A qualidade incrível da direção e da interpretação também permitem que algumas coisas que se passam pela cabeça das personagens seja interpretada na expressão do ator, mas somente nos livros você consegue acompanhar com perfeição cada ligação do enredo, o que torna a experiência infinitamente mais agradável e completa.
O livro permite que você “entre” na cabeça das personagens. Quando se tem personagens tão bem criados e com tamanha capacidade, entender a linha de raciocínio dos protagonistas se torna uma experiência realmente fascinante. Além disso, diferente no livro, fica bem claro a função de cada homem do Império Corleone.
“Um dos homens, procurando explicar isso a seu caporegime, disse:
- Este país tem sido bom para mim.
Depois que essa história foi contada a Don Corleone, ele retrucou raivosamente para o caporegime:
- Eu fui bom para esse rapaz”
Mario Puzo conhece bem a estrutura de uma famiglia da Cosa Nostra. Explica a famosa omertà (a lei do silêncio da Máfia) e cita sua origem. Explica a repulsa que os mafiosi tinham ao Estado. E demonstra claramente que um grande Don tinha sua própria ética, que não necessariamente teria a ver com a legalidade, mas não era um homem sem escrúpulos. De um modo leve, enquanto apenas narra o enredo, o livro demonstra a estrutura da máfia italiana. Vê-se claramente a separação da máfia em famílias e as relações entre elas, que não são necessariamente hostis. Ele passa rapidamente pela história da fundação da Cosa Nostra, explicando que, do ponto de vista dos mafiosos, a sua forma de agir é apenas um mecanismo de autotutela, ou, no mínimo, de defesa.
A Cosa Nostra talvez não seja mais a organização mafiosa italiana mais poderosa na atualidade, mas certamente é a mais famosa do mundo por ter sido a exportada para os Estados Unidos. Na maioria das vezes, quando alguém se refere a “máfia italiana”, está se referindo à Cosa Nostra, por ter sido o estilo de organização que atuou nos Estados Unidos. Conhecedor de tal informação, esse Duque se chocou quando um personagem real e conhecido em todo o mundo, Al Capone, foi citado em algumas passagens. Don Corleone se dirige ao “Scarface” como “napolitano”, que “não deveria se meter em negócios de sicilianos”. A passagem pode chocar, pois não há referência direta à participação de Al Capone no enredo da adaptação cinematográfica. Mas sim, o protagonista de “O Poderoso Chefão” é poderoso o suficiente para “enquadrar” aquele que, na época em que a situação se passa no livro, era “o inimigo público nº 1” dos Estados Unidos. A minha agradável surpresa foi saber que Al Capone tinha origem “Napolitana”. Entre aspas, porque a família do gangster real não era exatamente de Napoli, mas da região da Campania (região que Napoli é a principal cidade). Tecnicamente, como “napolitano”, Al deveria ser da Camorra, outra organização criminosa (de origem napolitana e, diferente da Cosa Nostra, de origem metropolitana e não rural), não da Cosa Nostra. Com essa informação que, apesar de ser um grande entusiasta da cultura e história italiana, eu desconhecia, passei a pesquisar rapidamente sobre Al. A conclusão foi que, a despeito de não ser realmente siciliano, Al Capone participou, de fato, da Cosa Nostra americana. Apesar de ser informação irrelevante para o enredo, que se desenvolveria bem sem ela e se encontra em apenas uma frase (“Por que um napolitano tem de se meter numa briga entre sicilianos?”), despertou todo esse interesse e permitiu essa chuva de informações. Resolvi incluí-las na resenha para demonstrar o quão bem feito foi o trabalho que Mario Puzo executou, ao escrever um preciso romance envolvendo a Máfia Italiana.
Como praticamente toda a história se desenvolve dentro de uma família mafiosa, a que era a mais poderosa dentro da cidade de Nova Iorque, é possível aprender claramente o trabalho e a forma de agir do Don, “o Padrinho”, “capo di tutti i capi” (chefe de todos os chefes, por tecnicamente funcionar como o líder das 5 famílias de Nova Iorque), de seu conseglieri, dos caporegimi e os soldados. Nada disso fica perfeitamente claro no filme, sequer qual a posição exata de cada integrante da família. A todo momento é possível perceber como o Don, apesar de extremamente respeitado em todo o país, está protegido das autoridades por uma rede muito maior, ainda que algum subalterno quebre a omertà. O livro deixa claro que a famiglia Corleone é a mais poderosa das 5 famílias de Nova Iorque no início do enredo, enquanto nos filmes a impressão que se tem é que é igual ou, talvez até inferior, à família Barzini.
Também fica claro que o comando dos “negócios de família” não é necessariamente hereditário. Desde o início do livro, Don Corleone já está em busca de um sucessor. Enquanto no filme dá a impressão que o primogênito Santino era o herdeiro óbvio da família, o livro deixa claro que Vito não pretendia deixar o comando da sua organização com o primogênito. Assim, quando Michael volta da Itália após a morte do irmão e assume a função de Don, nenhum leitor se pergunta o porquê da escolha, quando Fredo era mais velho. Michael sempre foi a escolha óbvia de Don Corleone, mesmo quando pretendia se afastar dos “negócios”. Vito realmente era frustrado com a impetuosidade de Sonny, tendo muita dificuldade de “educar” seu primogênito nos negócios da famiglia, embora ele tivesse um inegável talento “militar”.
Essa visão da família e sua estrutura não fica tão clara no filme, onde os caporegime’s parecem apenas outros gangsters. Luca Brasi também recebe uma importância muito maior na literatura. Aliás, Luca Brasi merece capítulos a parte, pois apesar de não ter alta hierarquia dentro da família, não sendo um caporegime, é um gangster diferenciado.
“Há cerca de 15 anos, alguns indivíduos queriam apoderar-se dos negócios de importação de azeite do meu pai. Tentaram matá-lo e quase conseguiram. Luca Brasi foi atrás deles. O fato é que ele matou seis homens em duas semanas, e isso acabou com a famosa guerra do azeite”
Não há dúvidas que Luca Brasi é a personagem mais injustiçada pela adaptação cinematográfica de “O Poderoso Chefão”. Descrito no livro como um “homem para intimidar o próprio diabo no inferno”, Luca Brasi foi retratado como um gangster comum, muito forte nos cinemas, cuja morte não parece alterar o poder da família como os ferimentos do Don.
A Família Corleone tinha centenas, talvez milhares, de gangsters. Mas Luca Brasi não era “mais um”. Aliás, se tinha uma coisa que Luca Brasi não era, é “comum”, ele “pertencia a uma espécie rara de homens”. Era um dos pilares do poder da Família Corleone, junto com o intelecto e habilidades diplomáticas do Don, que garantia a ele proteção e influência com o governo (influência baseada na história real de Frank “Primeiro Ministro” Costello). A habilidade real de Brasi era de “exército de um homem só”. Sozinho, o gangster era capaz de fazer serviço de dezenas de soldados. Isso dificultava muito comprovar ser ele o autor das atrocidades, porque não havia comparsa para delatá-lo e porque era difícil acreditar que tudo fora serviço de apenas um sujeito. O passado de Luca Brasi é algo realmente assustador. Demonstra claramente o porquê de ser um homem capaz de intimidar o próprio diabo no inferno, mas, para saber sobre isso, será necessário ler o livro. Não consigo reproduzir o acontecimento do forno.
Enquanto, no cinema, parece ser apenas um homem muito forte e abobado, sem qualquer relevância para o desenrolar das histórias, o livro demonstra a razão para a qual a família Corleone mostrava tanta tranquilidade em saber que Luca protegeria e vingaria Vito Corleone, quando ele foi baleado.
Luca Brasi, no enredo, foi um dos principais responsáveis pela vitória da Família Corleone na guerra do azeite, que se passa quinze anos antes dos eventos do livro. Também foi o responsável por intimidar Al Capone, matando sozinho dois de seus principais soldados, ambos enviados a Nova Iorque para matar Don Vito, também anterior aos acontecimentos do livro. É um dos pilares do poder e o principal responsável pela intimidação e proteção de Vito Corleone. Não é à toa, portanto, que Michael demonstra grande empolgação ao encontrar “seu próprio Luca Brasi” em Albert Neri. A perda de Luca Brasi somente foi reparada quando Clemenza encontra Albert Neri e o indica para o novo Don, Mike Corleone.
A morte de Luca Brasi abalou bastante a força da família Corleone. Mesmo os caporegime’s temiam o desenrolar da guerra contra o Turco Solozzo. O filme demonstra certo abalo nos principais membros da família, mas não demonstra o desespero que Sonny e seus subordinados sentiram ao acreditar em uma possível traição de Brasi. Mas Luca Brasi jamais trairia seu Don, que era a única coisa/ser que ele realmente temia e idolatrava.
“Homens realmente grandes não nascem grandes, tornam-se grandes”
A adaptação cinematográfica consegue demonstrar o grande crescimento dos dois Don Corleone. O Segundo filme, com Don Vito, e o primeiro com Don Michael. O desenvolvimento de Mike é uma adaptação perfeita, o de seu pai, nem tanto. O segundo filme mostra um pouco do passado de Vito Corleone, por que saiu da Itália, como se tornou respeitado nos EUA, como conheceu Clemenza e Tessio. A partir daí, não vai muito adiante. O livro vai. Conta sobre a guerra do azeite, como a família Corleone surpreendeu as famílias rivais e se consolidou como a mais poderosa de Nova Iorque. É realmente espetacular.
Verifica-se o brilhantismo de Vito não apenas em conquistar alianças e fidelidade de seus subordinados, mas também em tática e controle de território. A divisão de seus regime para manter os territórios e surpreender os rivais foi incrível. Naturalmente, Michael não nasceu sabendo. O filme faz parecer que a transição do comando da família entre Vito e Mike seja instantânea e não é. Apesar de ser o herdeiro natural de Vito e ter características muito semelhantes, Vito passou a ensinar pessoalmente Michael por um bom período, antes de transferir o comando da família. A única coisa que o novo Don demora a entender é como dizer “não” às pessoas a quem você gosta, afinal, você não pode dizer não a quem você gosta.
Sonny também teve esses ensinamentos. Mas desde o primeiro capítulo fica claro que ele não nasceu para isso e não assimilava bem as lições, diferente de seu irmão mais novo. Ainda assim, também foi uma personagem muito injustiçada nos filmes. Ele tinha seus méritos. Poderia não ser um bom Don, como de fato, Vito lembra que nunca achou que Tom Hagen não fosse um bom consiglieri, ele apenas não achava Santino um bom Don. Mas era um bom Caporegime e um bom líder militar dentro da famiglia.
Por fim, é incrível que, mesmo “ausente”, Don Vito Corleone prevê e adverte Mike sobre o que aconteceria em sua sucessão e como lidaria com ela. Mike demonstra sua sabedoria ao seguir os ensinamentos do pai e força ao lidar com sua previsão, no final do enredo. E, se o filme deixa subentendido que Kay Adams descobriu o que seu marido se tornou, o livro deixa muito claro.
Foi uma resenha difícil de escrever, não pelo tamanho que acabou ficando, mas para controlar o ímpeto de digitar uma tese de doutorado sobre ele, em vez de uma resenha. Sem dúvidas um dos meus livros favoritos, ainda que eu o tenha lido já sabendo o desfecho. Como a maioria das pessoas, vi os filmes primeiro.
Nota: 5 de 5.
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