Máh 11/08/2011minha estanteCaro Merlinus,
Apreciei muito a sua resenha, diferentemente de muitas outras que podem ser encontradas até mesmo em sites supostamente especializados em resenhas, a sua levantou pontos críticos da obra que são dignos de serem debatidos.
Gostaria de começar minha resenha-resposta, afirmando que não acho o livro ABdA uma obra isenta de falhas. Como grande fã de Senhor dos Anéis, não diria isso nem mesmo da obra prima de Tolkien. Porém, de fato, as qualidades do livro em muito surpassam os defeitos, e, possivelmente, a maior qualidade do livro foi a imaginação efervescente e potente de Spohr, que conseguiu conciliar, ao meu ver, de forma convincente, muito elementos históricos, religiosos, e míticos, que, à primeira vista, parecem completamente inconciliáveis.
Em segundo lugar, acho próprio discutir alguns pontos da sua "dissecação" do livro. Pra rebatê-las vou ter que dar spoilers, então, incautos, pulem para o final da "resenha".
(SPOILER)
Quanto ao livre-arbítrio:
Devo confessar, que esse ponto realmente não foi muito bem explicado no livro, uma de suas falhas. Ainda assim, arrisco a tentar formular algumas teorias acercar do assunto com o único objetivo de mostrar por que não considerei a questão do livre-arbítrio uma falha intolerável.
Segundo sua resenha, você diz que TODOS os anjos fazem escolhas, e isso já parte de um preceito incorreto. Não são todos os anjos que fazem escolhas, mas apenas o anjos mais poderosos. Segundo Spohr, os anjos são dividos em ciclos, 7 ciclos, sendo o sétimo ciclo reservado aos arcanjos, os mais poderosos da criação. Como tais, eles que tomam as decisões mais descabidas, até por que, a "casta" dos arcanjos não tem uma natureza bem definida como as demais castas. Reitero a afirmação de que a maioria dos anjos não toma decisões, relembrando que, segundo Spohr, o céu é habitado por centenas de milhões de anjos, e desses, a maioria simplesmente segue as ordens de seus superiores.
Não obstante, também sustento uma outra afirmativa: as decisões dos anjos diferiam do livre-arbítrio dos seres humanos.
De fato, muitos querubins de alta patente tomaram uma decisão, ou de seguir Ablon na sua revolta de Sodoma, ou de seguir Lúcifer mais tarde e ainda de se unir a Gabriel contra Miguel nas batalhas que se seguiram ao nascimento de Jesus.
Porém, nenhum deles escapou à Sina dos Querubins, que é de anjos lutadores. Todos decidiram pela guerra, de uma forma ou de outra. E assim por diante, com as outras castas.
Além disso, todos aqueles que fizeram uma escolha tinham algo em comum, algo que os aproximava dos seres humanos e os dotava de uma capacidade parecida com o livre-arbítrio, que era o Amor.
Então, os anjos que se rebelaram contra Miguel tinham em comum o Amor aos seres humanos. (Há aqui, mais uma falha de raciocínio, involve os anjos que guerrearam para o próprio bem, porém pode-se alegar que esses não escolheram e simplesmente fizeram aquilo que era mais adequado a sua natureza. Por exemplo, a decisão de Apollyon ao seguir Lúcifer era uma decisão de acordo com a sua natureza, sedenta por destruição)
Da mesma forma, os Arcanjos fizeram decisões baseadas em amor. Lúcifer e Miguel desejavam ascender ao caráter divino, para se aproximarem da magnitude de seu Pai, Yahweh. Agiram assim, portanto, querendo experimentar novamente a Grandeza do Amor de Yahweh. Gabriel mudou de decisão sobre sua conduta ao conhecer o Amor, sob a forma da terrena Maria, em cujo ser cintilava uma parte da Alma do Pai. A questão de ele ter tido um filho com ela é uma mera questão da "carnalidade", digamos assim. Enquanto ser carnal, Gabriel podia ser acometido por desejos carnais assim como os outros seres. O detalhe aqui é perceber que, o sexo propriamente dito, não é repudiado nem mesmo pela religião, quando há amor verdadeiro envolvido. De fato, o sexo é divino, pois é por meio desse que a humanidade teve a oportunidade de se reproduzir sobre a Terra. Por intermédio do mesmo, dois seres se tornam um só, carne da mesma carne. Sexo não é necessariamente impuro, e, portanto, o desejo por Maria não torna o Amor de Gabriel impuro também.
Rafael, que é o outro arcanjo que você cita, não tomou exatamente uma decisão, tendo, pelo contrário, abdicado da decisão e se isolado, sentindo-se vazio do amor do Pai. É claro que você pode encarar a não-decisão como uma decisão mas aí já estaríamos enveredando por conceitos filosofícos que não cabe a mim nessa resenha debater.
E, afinal, vemos Ablon, que toma também decisões extremamente descabidas. Porém, Ablon tem em si o Amor que sente por Shamira, que justifica seus atos, por que, como Spohr afirma, o Amor é um sentimento majoritariamente humano. É uma centelha divina que torna Ablon, portanto, capaz de tomar certas decisões, ainda que, teoricamente, limitadas. Então ele se torna capaz de rejeitar a sua missão para salvar o Amor da sua vida.
Jesus em ABdA:
Concordo, em grande parte com o que você disse sobre a figura de Jesus de ABdA. Ainda assim, devo discordar em alguns pontos, e discorrer sobre outros que considero importantes e mal interpretados. Quanto ao comentário de Orion, ele apenas reproduziu a crença popular de que Jesus é uma das partes da Trindade. Porém, nem ele nem Ablon sabiam, à época, a verdadeira natureza do Iluminado. Ou seja, para eles o título servia.
Quanto à importância "exagerada" de Jesus na história mundial, sendo chamado de Iluminado em detrimento de outros líderes de paz, vale lembrar que os anjos são criaturas do universo "hebreu", por assim dizer. Ou seja, a importância maior que ele tem, vai de encontro à prerrogativa angélica do livro. Jesus é o maior ícone da Bíblia, e, portanto, é natural que tivesse papel de destaque em um livro que fala sobre seres bíblicos.
E, adentrando no assunto da Bíblia e às referências Bíblicas em ABdA, é imprescindível relembrar que em momento algum do livro o Autor explicita que a Bíblia é receptáculo maior de informações sobre a Mitologia do livro, ou sobre a verdade do Universo.
De fato, Ablon pesquisa um manuscrito que fala sobre o apocalipse, e o apocalipse transcorre de acordo com o descrito no último dos livros bíblicos, porém, isso não torna as outras narrativas bíblicas em algo certo. O por que da descrição do Apocalipse bater com os acontecimentos do Apocalipse é uma questão obscura, mas não acho que é uma hipótese ruim considerar que algum anjo Malakin tenha dado o escrito para Pedro propagar a palavra e tentar reverter. Ou mesmo um Ofanin, que cuidam dos seres humanos. Enfim, há muitas possibilidades e nem todas elas são incoerentes. Ademais, a Bíblia como conhecemos hoje é apenas um apanhado de escritos provenientes de locais diferentes e selecionados de acordo com os interesses da Igreja e provalvemente adulterados também segundo os mesmos. Portanto, não é claro que a Bíblia seja realmente confiável quanto à veracidade das informações.
Quanto a Yahweh:
Também achei o Deus máximo da mitologia de ABdA inconsequente e patético, porém, a sua decisão de se dissolver no universo para ser onipresente é uma decisão que faz sentido, pois o mesmo desejava estar perto de sua criação o máximo possível. É uma atitude egoísta, mesquinha e idiota, sim, mas faz sentido. Ninguém disse, no Livro, que Yahweh era perfeito.
Ademais, ele deixou os seres humanos pra fazerem suas próprias escolhas, assim como, de certa forma, também deixou essa opção de fazer as próprias escolhas aos anjos e arcanjos.
Sobre personagens patéticos:
Concordo inteiramente que a Irmandande dos 18 foi patética ao falhar. Porém, há de se lembrar que estavam lutando com poderes muito grandes, e, afinal, eram apenas 18. Ao serem banidos do céu, perderam a capacidade de lutar por seus ideais, pois não mais poderiam voltar ao plano etéreo (ou assim acreditavam). Fugiram por que tinham de fugir pra preservar a vida própria, mas ainda assim lutaram quando eram desafiados. O grande valor deles foi realmente como símbolo da resistência pois a maioria absoluta dos anjos não teriam coragem de se levantar contra Miguel, não sem um símbolo. A maior virtude dos dezoito foi a coragem, ainda que uma coragem burra que não levou a nada de imediato.
Quanto a Sieme morrer, concordo inteiramente que foi desnecessário. O bendito tempo que ela ganhou não serviu realmente pra nada, se formos sinceros. Mas, a verdade é que ela fez uma escolha. Ela desejava morrer lutando pelo seu ideal, principalmente depois de absorver parte da maravilha divina da criação, de entender o poder do amor ao absorver as memórias da controladora de tráfego aéreo no Brasil. Se ela fosse privada dessa escolha, é provável que ela morresse em desgraça, nunca mais recuperasse o orgulho e a auto-estima. Portanto, o que Ablon fez foi apenas respeitar sua decisão, de uma forma que muitos de nós deveríamos aprender a fazer em relação a nossos semelhantes e, principalmente, àqueles que não são tão semelhantes.
Quanto à irmandade:
Concordo com quase tudo, o único detalhe que tenho a acrescentar é que essa vontade de reencontrar os velhos amigos é justificada, primeiro pelo fato de o perigo ter-se tornado palpável, e segundo pela própria solidão da longa separação. O que não torna menos ridículo, e, sim, mais compreensível a atitude tomada pelos dois anjos renegados.
Quanto À Ishtar:
Realmente teria sido mais fácil matar Ablon logo, porém ele parecia ser mais difícil de rastrear que os outros, e também muito mais poderoso, impondo um desafio mais complicado de se transpor.
Quanto a Ablon:
Ele é meio exagerado mesmo. O.o
Flashback 1 (veneno):
A lógica do veneno não é perfeita, mas é "engolível". O tempo que faltava para ele morrer, ele podia saber por que está contado a história do futuro, como pode-se perceber pela forma "onisciente" como conta todas as histórias. Também não entendi muito bem a forma como ele descreve tão bem os compradores, mas creio que é simplesmente uma oscilação entre uma narrativa limitada em primeira pessoa e outra onisciente em terceira pessoa, que se ajusta conforme a "necessidade" da história. É claro que esse recurso tira um pouco da verossimilhança do relato, porém também não considero um erro grave.
Flashback 2 (Zamir):
Não entendi essa também, realmente seria burrice atrasar a sua ida. Por outro lado, a confiança é uma faca de dois gumes, e poderia tê-lo feito acreditar que não havia motivo pra se apressar pois Ablon já estava morto e ninguém mais poderia impedir. Agora, daí pra ele ter chegado no exato mesmo dia que Ablon, a única explicação é mesmo pra dar dinamismo a história, apesar de ser uma coincidência inverossímil.
Flashback 3 (Shamira):
Uma bruxa, na mesma região que ele sabia que ela estava, de pele alva e cabelo negros. Seria difícil que não fosse Shamira. Ademais, ela gostar da natureza não exclui ela gostar de cidades. Eu,por exemplo, adoro a natureza, amo deitar na relva ouvir o canto dos passáros, olhar pro céu, etc... Mas nem por isso eu vou passar a minha vida inteira no meio da floresta.
Chapolin:
Acho que o que Lúcifer queria dizer é que Ablon não deveria morrer com honra, morto em um duelo, e, sim, depois de ser humilhado por 200 anos e então executado em praça pública demonstrando que o mesmo era incapaz e fraco, e não um líder honrado de legiões.
Lúcifer e Miguel:
Provavelmente eles resolveram antecipar a divisão para se prepararem pra ser deuses diferentes, e também pra dar uma motivação para os guerreiros sob seus comandos (guerreiros funcionam através de guerra, esse é o princípio que eles defendiam).
O poder de Miguel não era absoluto, mesmo sem Deus. Em dado momento do livro é dito que a força dos sábios humanos que vivem no terceiro céu é tão poderosa que nem um arcanjo poderia entrar lá sem ser autorizado. Ademais, Miguel temia a revolta dos anjos, por isso tinha quem parecer justo, por isso não exterminou completamente a humanidade. Depois, quando não tinha mais esse "empecilho", o tecido da realidade dificultou suas ações na terra e as guerras civis começaram, demandando grande atenção.
E, ainda mais, Miguel acreditava que não conseguiria exterminar a raça humana sozinho, pois depositava sua confiança naquilo que estava supostamente escrito no livro da vida, que dizia que eles só pereceriam totalmente ao final do sétimo dia.
Babel:
Ablon não mata mais de mil homens.
Pág 113:
"Correu depois pelo meio dos homens, evitando cada ataque, cada pancada, e revidando também, com movimentos tão rápidos que INCAPACITAVAM os soldados. Logo, perto de mil babilônicos já haviam sucumbido".
Ou seja, perto de mil babilônicos incapacitados, o que condiz com as habilidades do guerreiro, que conhecia pontos vitais capazes de paralizar os seres humanos.
E tem, sim, uma diferença entre ceifar a vida do Rei e condená-lo ao sofrimento. Segundo a lógica de muitos alados, a redenção é alcançada através do sofrimento. É só observar o objetivo do purgatório, que é de purificar as almas através da dor. É uma lógica condizente com a natureza dos anjos.
(/SPOILER)
Pra terminar, acho que é uma boa idéia explicitar o motivo pelo qual gostei muito do livro.
Spohr conseguiu conciliar, sim, várias referências mitológicas e pop no seu livro. Muitas pessoas compararam o poder dos anjos à Cavaleiros do Zodíaco, achando que tinha algo errado nisso. Eu não vejo nada errado nisso, e o próprio Spohr sustenta que, dentre as inspirações para escrever o livro, figuram os desenhos animados japoneses.
Além disso, criticam a existência de seres como fadas, duendes, etc...
Pelo que entendi essas entidades só existem na nossa dimensão por causa da nossa crença nelas. Ou seja, a nossa crença alimenta a existência de seres fantásticos, então, rememorando Peter Pan, cada vez que você diz que não acredita em fadas, você mata uma fada. E o raciocínio é esse mesmo. Os próprios Deuses pagãos tiravam seu poder da adoração que recebiam dos humanos, que tinham uma fagulha de Yahweh, o Deus supremo, dentro de si. Yahweh se tornou supremo ao derrotar Tehom, e dele tudo que existe no universo hoje derivou então ele é o mais poderoso ser que existe. De fato, todo o resto é parte dele, e nada disso entra em contradição. A mitologia encaixa e tudo faz bastante sentido, no geral.
O livro só não é melhor por que, chegando perto do final, Spohr começa a apelar pra clichês gritantes e termina de um jeito estúpido e sem explicar nada sobre o que aconteceu.
Porém, reitero, toda a Mitologia do livro é fantástica e merece sim aplauso, esse livro brasileiro.
E mais, a maestria com que ele recria cenários ancestrais, como a Roma Antiga, a China dos imperadores, o deserto arábico, a Babilônia, etc. é linda.
Tenho quase certeza de que tinha mais coisas pra falar mas já cansei de escrever. ¬¬