Lancelote O Cavaleiro da Carreta

Lancelote O Cavaleiro da Carreta Chretien de Troyes




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Luiza 17/09/2014

Aquele cavaleiro perfeito...
Lancelote, o Cavaleiro da Carreta insere-se entre as muitas narrativas inspiradas das lendas celtas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda. Dentre estes, Lancelote celebrizou-se não apenas por seus feitos heroicos, mas pelo seu amor pela rainha Ginevra, esposa do rei Artur, e suas proezas para merecê-la. É considerado como o amante perfeito, aquele que não hesita em perder a vida, e até a honra, por sua amada, enquadrando-se assim no código da moral cortês que reinava nas cortes francesas no século XII.
Na literatura, dois tipos de amantes tornaram-se proverbiais: Lancelote, do século XII, e D. Juan, do século XVII, que se contrapõem em seus atos e intenções. Enquanto este é o protótipo do amante infiel e inseguro que se compraz apenas em conquistar para logo abandonar aquela que perseguiu com tanto afinco, Lancelote recusa os avanços das outras mulheres e só pensa em sua dama por quem chega a subir na carreta da infâmia e a merecer o desprezo de todos.
Esta narrativa não se contenta em mostrar a ação, as peripécias do cavaleiro, mas aprofunda-se na análise psicológica penetrando nos seus pensamentos, suas dúvidas, anseios e desejos mais profundos. Chrétiens de Troyes atinge momentos de alto lirismo ao narrar a paixão de Lancelote, o seu enlevo diante dos cabelos dourados de Ginevra encontrados no pente da rainha, o seu desespero ao pensar que ela morreu, a sua impaciência quando se prepara para ir encontrá-la à janela, a sua atitude de adoração diante dela. Por outro lado, os combates que o herói trava são relatados com realismo e vivacidade, em descrições às quais não faltam cores, nem sons.
A leitura deste livro poderá, para leitor comum, despertar apenas prazer de seguir as múltiplas aventuras do cavaleiro para salvar Ginevra do seu raptor, Meleagante; mas, para os estudiosos de letras, deverá também proporcionar o contato com um texto medieval de grande importância.
Lancelote, O Cavaleiro da Carreta representa a primeira tradução para o português de uma das obras mais representativas de Chrétien de Troyes, o maior poeta da literatura cortês, que surgiu na França, no século XII.

"O cavaleiro a pé, sem lança, aproxima-se da carreta e vê um anão sobre os varais, segurando, à guisa de chicote, uma longa vara na mão.
O cavaleiro disse ao anão:
- Anão, dize-me, por Deus, se não viste passar por aqui a minha senhora, a rainha.
O anão, canalha execrável, não quis dar-lhe nenhuma notícia, mas disse:
Se quiseres subir a esta carreta que eu conduzo, poderás saber até amanhã o que aconteceu à rainha.
E continua o seu caminho sem esperar por ele.
Por um instante, o cavaleiro hesita em entrar na carreta. Fez muito mal temendo o opróbio e não ousando nela subir em seguida. Vai se culpar por ter julgado mal a questão.
Mas Razão, separada de Amor, aconselha-o a não subir. Repreende-o e ensina-lhe a não fazer nem empreender nada de que possa envergonhar-se ou arrepender-se. Essa Razão não reside no coração, mas apenas na boca e arrisca-se muito falando assim. Amor está encravado no seu coração e ordena-lhe que entre imediatamente na carreta. É esse o desejo de Amor e o cavaleiro obedece. Pouco lhe importa a vergonha se é isso o que Amor deseja e manda.
Messire Gauvain galopa atrás da carreta. Ali, encontra sentado o cavaleiro e não acredita no que vê..."

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Comentários de Vera de Azambuja Harvey + Trechos da obra (contém SPOILERS):

O CAVALEIRO DA CARRETA E SEU UNIVERSO:

O Cavaleiro da Carreta constitui uma das obras mais representativas da literatura cortês que, satisfazendo os gostos requintados dos nobres, surgiu no século XII, nas cortes dos reis e senhores feudais.
No século XII, com o progresso econômico, desenvolveu-se a cultura, que não mais permaneceu restrita aos membros do clero e a alguns monges dos conventos e passou a interessar aos fidalgos, as pessoas das classes mais abastadas.
Nas cortes formadas em torno dos grandes senhores feudais como as da Aquitânia, do Anjou, da Champagne e da Normandia, faziam-se torneios de inteligência e jogos mentais. Surgiu o xadrez e apareceram os poemas de amor, os romances cantados por jograis ou trovadores ou escritos numa língua que não era mais a do povo, mas de pessoas instruídas e bem-educadas.
Um elemento importante na evolução cultural da sociedade foi a mudança da situação subalterna da mulher que Ocorreu a partir do fim do século XI. Na religião, enalteceram-se Santa Madalena e a Virgem Maria, medianeira indispensável junto a Jesus Cristo. Firmaram-se os direitos da mulher e assim o repúdio, atitude comum tomada pelo marido que se cansava da mulher, passou a ser controlado pela Igreja. A mulher obteve o direito de administrar os bens do marido ausente nas Cruzadas e a moral dos cavaleiros elevava-a e respeitava-a.
A conversa e o convívio com as damas, nas pequenas salas de conversação dos castelos mais modernos, era um dos divertimentos preferidos da nobreza, principalmente no sul da França.
Entre 1100 e 1 140, elaborou-se uma nova concepção das relações entre o homem e a mulher: o amor cortês. Esse sentimento tem muita relação com a devoção religiosa e a dedicação do vassalo para com o seu suserano. E um amor independente do casamento que, quase sempre, se contenta com a contemplação platônica, mas que também objetiva o encontro dos corpos, como acontece em Tristão e Isolda e em "O Cavaleiro da Carreta" ("Le Chevalier de la Charrette").
Essa atitude que foi sendo, pouco a pouco, transportada para o norte da França, chegou ao auge com o casamento de Alienor da Aquitânia com o futuro rei Luís VII da França. Alienor tentou, durante quinze anos, adaptar a corte do norte aos hábitos e costumes da corte do sul, de Poitiers, mas acabou divorciando-se. No entanto, suas duas filhas (que se casaram com o conde de Blois e o conde de Champagne) e ela própria, por seu segundo casamento com Henrique Plantageneta (que provocou a reunião dos ducados de Aquitânia, Anjou e Normandia sob o cetro da Inglaterra), tiveram muita influência nos novos hábitos das cortes do norte.
Segundo a tendência de exaltar o amor, os literatos passaram a escrever dissertações sobre a arte de viver e de amar. André, capelão de Marie de Champagne, escreveu e dedicou à sua protetora, no ano de 1184, em latim, "De Amore", tratado em que expõe as regras do amor cortês.
Nasceu na mesma época um novo gênero literário: o romance cortês. Este surgiu do interesse dos nobres em ouvir histórias mais refinadas do que as que inspiravam as canções de gesta. Chama-se "cortês" porque se relaciona com a corte e trata de sentimentos nobres, como a generosidade, a valentia, o amor e a polidez.
O romance distingue-se das canções de gesta pela forma: a poesia não se destina mais ao canto e sim à leitura. Os versos, mais curtos e assonantados dois a dois, são lidos para pequenos grupos; sua matéria é puramente ficcional, não se prendendo a situações históricas.
O tema também não é mais realista e trata de aventuras sobrenaturais, ligadas ao processo da viagem por um mundo de sonho, da busca. Primeiro, os romances inspiraram-se na literatura antiga, como o Roman de Thébes, de 1150, aproximadamente, e o Roman de Troie. não se encontram mais, como nas canções de gesta, lutas entre cristãos e infiéis e dá-se mais importância à vida na corte e ao amor.
Em 1170, através dos Plantagenetas, a "matiére de Bretagne" (matéria da Bretanha), com as imagens e o simbolismo da fábula celta, penetrou na Normandia e na Aquitânia, vinda do País de Gales, da Cornualha e da Armórica, como reação à "matiêre de France", que exaltava Carlos Magno e a dinastia carolíngia, rival dos Plantagenetas.
Em reação à influência romanizante dos conquistadores, a imaginação dos celtas extravasava-se nas suas narrativas. Talvez, influenciados pelo próprio clima frio e enevoado da região em que vivem, amam a fantasia, o mistério, e inquietam-se com um mundo maravilhoso, povoado de seres sobrenaturais onde há fadas e magos, objetos milagrosos, unguentos e poções mágicas e todo tipo de prodígios.
Vítimas de invasões e guerras seculares que os despojaram de suas terras e de seus bens, agrupados num canto da grande ilha britânica ou refugiados no continente, na Armórica, no extremo noroeste da França, apegaram-se às tradições. Estas eram divulgadas pelos narradores de "lais", composições em que se alternavam a prosa e os versos octossilábicos assonantados, acompanhados ao som da "rote", uma pequena harpa. Os harpistas bretões, os bardos, percorriam as províncias anglo-normandas e francesas narrando suas histórias sobre o rei Artur, Tristão, Merlim, etc. Eram, provavelmente, os continuadores e imitadores dos "filid", poetas e jograis da Irlanda, e a maioria dos estudiosos concorda que a mitologia irlandesa baseiase no romance bretão, já que influenciou a galesa.
A "Historia Regum Britanniae" ("História dos Reis da Bretanha"), escrita em 1137, aproximadamente, por Geoffroi de Monmouth, em latim, mas com quatro traduções francesas, tornou célebres o rei Artur, seus cavaleiros e os demais personagens que compunham sua corte. As lendas de Tristão, da busca do Santo Graal, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda servem de tema aos "lais" (poemas) de Marie de France, primeira mulher a deixar uma obra escrita, a Gautier d' Arras, o primeiro trovador do norte da França, e a Chrétien de Troyes, o maior poeta da época, autor de Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, entre outras obras.
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Como não se conservam muitos documentos relativos à Idade Média, pouco se sabe sobre a vida e a personalidade do poeta. Deve ter nascido em Troyes, por volta de 1135, e deixou sete romances, seis dos quais tratam de temas referentes à crônica do rei Artur: "Erec et Enide", "Cligês ou Ia Fausse Mort", "Lancelote ou Le Chevalier de la Charrette", " Yvain ou le Chevalier au lion", que tratam de aventuras heróicas, e "Perceval ou Le Conte du Graal", que mostra uma aventura mística: a busca do Santo Graal. Também escreveu, quando jovem, o romance de Guillaume d 'Angleterre e parece que deixou outro sobre Tristão. Essa última obra não foi encontrada, mas teria sido a primeira sobre o tema na literatura francesa.
Foi protegido de Henrique I, conde de Champagne, que se casaria com Marie, filha da rainha Alienor da Aquitânia, de quem já se falou aqui. Marie de Champagne incentivava muito a vida intelectual na corte, os tribunais de amor e as leituras de poemas e romances.
Após a morte do marido, Marie internou-se num convento e Chrétien buscou outro protetor no conde Philippe d'Alsace, em torno de quem se reunia a corte de Flandres. Foi por sua influência que Chrétien iniciou Perceval, que deixou inacabado ao morrer. Como sua morte ocorreu antes da partida do conde de Flandres para a Cruzada, sua . data pode ser definida como anterior a 1190.
Parece que foi clérigo, o que não significa que fosse sacerdote. Na Idade Média, o clérigo era um intelectual que conhecia o latim, devendo ter sido educado para ser religioso, pois a Igreja monopolizava a cultura. No entanto, podia ter recebido apenas as ordens menores ou ter-se retirado antes de fazê-lo. Os clérigos eram os homens de letras da época. No seu trabalho, traduziam os autores antigos, como Ovídio e Virgílio, e muitas vezes imitavam-nos ao escrever seus próprios textos.
A ideia de escrever "Lancelote, o Cavaleiro da Carreta" foi sugerida a Chrétien de Troyes por Marie de Champagne, que lhe deu o tema do romance, como ele afirma na introdução. Chrétien, que era piedoso e austero, não parece ter-se sentido muito à vontade ao desenvolver a história do amor de Lancelote pela esposa do seu soberano. Não devia concordar tampouco com o comportamento de Ginevra, que cede à paixão e se entrega ao seu amado. Suas convicções religiosas tornam a tarefa difícil e ele a cumpre quase como uma obrigação. Isso pode ser observado no início do romance, pelo emprego da conjunção "já que", que exprime uma causa imposta, contra a qual nada se pode fazer. O autor parece desculpar-se pelo tema tratado.

"Já que a senhora condessa de Champagne deseja que eu escreva um romance, eu o farei de bom grado como um homem que lhe é totalmente devotado em tudo o que pode realizar neste mundo. Digo-o sem pôr nisso um só grão de incenso, mas conheço outros que gostariam de celebrar-lhe os louvores e diriam, com certeza, que essa dama supera todas as outras, como o zéfiro que sopra em abril sobrepuja todos os outros ventos.
Não, palavra de honra, não sou tão ambicioso para assim louvar a minha senhora! Direi então: uma pedra preciosa vale tantas pérolas e sardônicas como condessas vale a rainha? Não, realmente não direi nada sobre ela, embora tudo isso seja verdade. Mas direi que, nesta obra, atuam mais as suas ordens do que o meu talento e o meu esforço.
Chrétien começa pois a rimar seu livro O Cavaleiro da Carreta. A condessa dá-lhe o tema e o conteúdo e ele põe-se a pensar só despendendo nele o seu trabalho e atenção."

Como o poeta, ao falar de sua inspiradora, chama-a de condessa de Champagne, pode-se concluir que o romance foi escrito após 1164, ano do casamento da filha do rei da França, Luís VII, e de Alienor da Aquitânia. Segundo os estudiosos, o poeta teria escrito "Yvain" e "Lancelote" ao mesmo tempo, entre 1177 e 1181. Não se sabe a razão pela qual não terminou O Cavaleiro da Carreta, mas Geoffroi de Lagny fê-Io com seu consentimento, como consta na conclusão do romance.

"Senhores, se eu prolongasse esta narrativa sairia do tema. Por isso apresso-me a encerrar meu trabalho. Este conto chega aqui a seu fim. Godefroi de Lagny, o clérigo, terminou O Cavaleiro da Carreta. Ninguém pense em censurá-lo por ter ido mais longe do que Chrétien em busca do seu rastro. Fê-lo de acordo com aquele que o precedeu. Sua tarefa começou no momento em que Lancelote foi preso na torre; e não parou antes do desenlace. Foi essa a sua contribuição: não deseja nada acrescentar e nada omitir. Do contrário recearia prejudicar o conto."

A obra cuja tradução leremos a seguir compõe-se, segundo a tradição do gênero, de vários episódios ou peripécias: a rainha Ginevra, acompanhada do senescal Keu, é levada à força por Meleagante à terra do pai deste, Baudemaguz, rei de Gorre, e de lá só voltará se algum cavaleiro for buscá-Ia vencendo seu carcereiro. Lá, já estão exilados muitos cavaleiros e suas famílias, todos sequestrados pelo pérfido Meleagante.
As fontes em que o poeta se inspirou parecem ter sido quatro longas narrativas em prosa, em francês, contidas em manuscritos baseados nas obras dos contistas bretões e girando em torno dos famosos cavaleiros da Távola Redonda. Certas incoerências encontradas em "O Cavaleiro da Carreta" cujo tema, não sendo de livre escolha do autor, deve ter sido seguido mais fielmente podem, sem dúvida, ser atribuídas ao texto original. Isso não pode ser afirmado com certeza, pois não se encontrou o manuscrito que teria servido de guia ao poeta.
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O personagem Lancelote e seu amor pela rainha já eram conhecidos na época. O papel de Chrétien foi adaptar o personagem e suas atitudes às regras do amor cortês, que Marie de Champagne apreciava, e são ilustradas no romance.
O núcleo de "Yvain ou le Chevalier au lion" é a história galesa do rapto de Gwenwyvar por Melwas, acrescida de detalhes tirados do rapto de Greiddylat por Gwynn e de outros incidentes da saga de Cuchulainn e da lenda de Modron, deusa das águas (LOOMIS, Richard S. Arthurian Tradition and Chrétien de Troyes, pp. 466-467). Há um romance Lanzelet, de autor suíço, anterior ao de Chrétien de Troyes, mas de concepção diferente. Parece que a fama de Lancelote como amante de Ginevra se deve ao romance de Chrétien de Troyes pois, anteriormente, ele era mais conhecido por suas proezas e valentia.
Entre 1215 e 1230, foi-se compondo uma longa série de romances do ciclo de Lancelote em Prosa ou Vulgata Arturica em que estão compiladas, em muitas centenas de páginas, as aventuras do rei Artur e seus cavaleiros, escritas por vários autores. Esses romances estão classificados em três partes principais: Lancelote, A Busca do Santo Graal e A Morte de Artur.
Pode-se observar que o autor introduziu, no seu romance, episódios inspirados em obras já conhecidas, como é o caso do leito manchado de sangue, que não deixa dúvidas quanto à sua origem na história de Tristão e Isolda, e o do desespero de Ginevra ao pensar que Lancelote morreu, cuja fonte é, segundo o próprio autor, a narrativa de Píramo e Tisbé contida nas Metamorfoses de Ovídio.
Também deve ter acrescentado outros de sua invenção, mas que se enquadram na tradição céltica, como a lança incendiada, o encontro do pente de Ginevra, as alucinações do herói, a ajuda mágica que recebe através do anel dado por Morgana, a da esposa do seu carcereiro, o condestável de Meleagante, que lhe empresta as armas para participar do torneio em Noauz, e a da irmã de seu inimigo, agente de sua fuga para sempre das garras do tirano.
O rei Artur não é mostrado como herói. Ao contrário, entrega a mulher a Keu, que a leva ao inimigo, e depois, ao invés de ele mesmo resgatá-la, confia essa missão a Lancelote e Gauvain. Também, não parece perceber a infidelidade da mulher e do amigo. A condição de marido traído prejudica-o aos olhos do leitor mas, segundo a técnica neste tipo da narrativa, só o herói pode brilhar. Assim, Artur e Gauvain perdem o prestígio para que cresça o de Lancelote. Meleagante, apesar de todos os seus defeitos, é apresentado como extremamente forte e astucioso, pois dessa forma valoriza-se a vitória de Lancelote sobre ele.
Lancelote, um dos cavaleiros favoritos do rei Artur, que sempre amou a rainha em segredo, sai à sua procura. O romance consiste nas aventuras, combates e perigos que ele enfrenta para salvar Ginevra. De todas as provas por que passou, a mais difícil foi a subida na carreta. Subir numa carreta, símbolo de infâmia pois servia de patíbulo na época, era considerado uma ignomínia e quem o fazia passava a merecer o desprezo de todos. Lancelote, no entanto, não hesitou em fazê-Io quando lhe disseram que este era o único meio de ele saber onde estava a rainha. Esse gesto enquadra-se perfeitamente no código do amor cortês pois por sua amiga o cavaleiro devia arriscar-se a tudo: a perder a vida e até a honra.
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A atitude de indiferença da rainha quando Baudemaguz lhe apresenta Lancelote como seu salvador é também coerente com o código moral e social do tempo. Ela não pode revelar seu amor pelo cavaleiro e finge estar revoltada por ele ter subido na carreta. Na verdade, sua resistência não é grande, pois ao saber que foi feito prisioneiro pelos soldados do rei, que quase o mataram, ela revela seus verdadeiros sentimentos chorando e desesperando-se. E já não mostra muito recato ao encontrar Lancelote na frente do rei, deixando transparecer sua alegria.
Chrétien tem o cuidado de dizer que Ginevra só cedeu à paixão depois de acreditar ter perdido o seu amado. Mostra-a como uma mulher ciosa dos seus deveres, mas humana, sem forças contra o amor que a domina. Não se sente o mesmo dilema em Lancelote. Ele não pensa no amigo que vai trair quando tenta desesperadamente arrancar as grades da janela do quarto da rainha para ir ter com ela, no leito. A cena na cama é descrita de forma velada, sem crueza, mas o autor afirma claramente que, " Nesse prazer amoroso, experimentam tanta felicidade que vem dos beijos e de toda a festa dos sentidos que eles se sentem invadidos por uma alegria prodigiosa".

"A janela estava a uma boa altura, mas Lancelote galgou-a com presteza. Encontrou Keu mergulhado no sono. Então dirigiu-se para a cama da rainha. Inclina-se diante dela em adoração, pois seu respeito pelas relíquias dos santos não é maior do que o que tem por ela. Mas a rainha estende-lhe os braços, abraça-o e aperta-o ao encontro do coração, puxando-o para perto de si na cama. Acolhe-o com um fervor sem reservas, pois Amor e o seu próprio coração inspiram os gestos. É Amor que a leva a recebê-lo tão bem. Mas se ela amou Lancelote com tão grande amor, ele ainda se mostrou mil vezes mais apaixonado, pois Amor abandonou todos os outros corações para vir transbordar dele. Melhor ainda, foi no seu coração que Amor se revigorou a tal ponto que esmoreceu nos outros. Agora os votos de Lancelote foram exaltados, pois a rainha se compraz com sua companhia e suas carícias, ele a tem nos braços e ela também o abraça. Nesse prazer amoroso, experimentam tanta felicidade que vem dos beijos e de toda a festa dos sentidos que eles se sentem invadidos por uma alegria prodigiosa. Nunca se ouviu falar de uma maravilha igual. Mas é melhor que eu me cale sobre isso. Toda história deve respeitá-la pelo silêncio. A maior e mais deleitosa das alegrias foi aquela; que a nossa história pretende conservar secreta. Lancelote passou toda a noite naquele deleite. Mas chegou o dia, inimigo da sua alegria, pois ele tem de sair de perto da sua amiga. E parecia um mártir, pois separar-se dela era um suplício. Seu coração insiste em voltar para o lugar em que a rainha ficou. Ele não tem forças para controlá-lo. Aquele coração está muito enfeitiçado para consentir em abandonar a rainha. O corpo vai, mas o coração permanece."

No episódio que antecede o do encontro no quarto, a menção da história de Píramo e Tisbé funciona como uma construção em abismo em que a narrativa menor reflete, como em miniatura, a narrativa maior. Na história de Píramo, Tisbé, ao encontrar o corpo de Píramo, que se matara ao pensar que ela tinha morri do, mata-se também para corresponder ao seu amor. Essa narrativa de Ovídio nas "Metamorfoses" deveria servir de inspiração à peça de Shakepeare Romeu e Julieta. Chrétien não pretendia escrever uma tragédia, mas a citação, além de mostrar a erudição do autor, serve para enfatizar o desespero de Ginevra, pois dá-nos a entender que ela se mataria se soubesse que Lancelote havia morrido realmente.
Chrétien, como verdadeiro poeta, recriou o seu tema acrescentando-lhe um significado coerente com a moral cortês e enriquecendo a narrativa com a análise psicológica. Penetra no íntimo dos personagens descrevendo suas dúvidas, anseios e desejos, mostrando-os como verdadeiros seres humanos, capazes de fraquezas e cedendo aos impulsos do coração e da carne.
Certas situações inverossímeis, como as passagens pela ponte da espada e a ponte dentro d'água, mergulham o leitor numa atmosfera feérica, propícia ao devaneio. As explicações lógicas não fazem parte desse gênero de narrativa, pois reduziriam o elemento maravilhoso. No entanto, Chrétien não deixa de pintar com realismo seus personagens e os cenários em que se movimentam, descrevendo suas roupas, a maneira de se prepararem para dormir e para comer, os móveis, os utensílios, empregando os termos próprios quando se trata dos torneios, assim como citando provérbios.
Suas descrições não são minuciosas, mas pela escolha dos detalhes mais marcantes e pelo emprego de metáforas e comparações ele consegue transmitir com vivacidade situações e cenas. Um elemento importante, também característico do gênero, é o suspense, obtido pela interpolação de episódios dentro do episódio principal e, neste caso, principalmente pela omissão do nome do cavaleiro, vitorioso em tantos combates, que só quase na metade da narrativa é chamado, enfim, de Lancelote.
A cópia do texto original de "Le Chevalier de la Charrette" como dos outros romances de Chrétien de Troyes, foi feita por Guiot e publicada pela primeira vez por Wendelin Foerster em 1887, na sua edição completa das obras do poeta.
Na tradução deste romance para o português foram cotejadas a cópia de Guiot publicada por Mario Roques, as versões em francês moderno de Jean Frappier e Jean-Pierre Foucher e a tradução para o espanhol de Luiz Alberto de Cuenca e Carlos García Gual. A tradução do romance para o português foi feita em prosa, como todas as versões existentes em língua moderna. Entretanto tentou-se conservar o tom poético da narrativa através das sonoridades, inversões e repetições; o seu sabor antigo pelo emprego da 2ª pessoa do plural, as formas de tratamento e o vocabulário, a mistura do presente e do passado numa mesma frase e a simplicidade das estruturas frasais.
Quanto aos nomes próprios, os de Lancelote e Ginevra já estão consagrados em português. Conservamos todos os outros no original, com exceção do de Meleagant, que preferimos aportuguesar para Meleagante. Embora em todas as versões modernas o nome do pai de Meleagante seja grafado com s no final, preferimos o z da cópia de Guiot, a fim de conservar a acentuação oxítona da palavra como em francês: Baudemaguz.
Ao traduzir "Lancelote, Le Chevalier de la Charrette", deparamo-nos com o seguinte dilema, como já ocorreu com Yvain, o Cavaleiro do Leão: conservar o texto original com suas estruturas pouco elaboradas e suas repetições, ou adaptá-Io tornando mais leve a sua leitura. Preferimos seguir o princípio que tem, sempre, orientado o nosso trabalho: a maior fidelidade possível ao texto de partida.

Mais Trechos:

Quem fala mal do outro está longe de valer o que vale que ele censura e despreza.

O que se diz a um louco tem muito pouco efeito. Quando se quer livrar o louco da loucura, só se consegue perder tempo e forças em esforços supérfluos. De que adianta aconselhar, ensinar a sensatez a quem se abstém de praticá-la? Mal se acaba de ensiná-la, ela desaparece.

Só vejo em ti raiva e loucura. Conheço bem teu coração perverso; ele vai ser de novo a causa da tua desgraça. Maldito seja quem puder jamais pensar que Lancelote tenha fugido com medo de ti, aquele cavaleiro perfeito, que tu és o único a não honrar. Mas talvez ele já não seja deste mundo ou então esteja preso entre as muralhas de uma prisão, com uma porta tão bem fechada que dela não possa sair sem a permissão do carcereiro. Eu teria sem dúvida um grande pesar se ele tivesse morrido ou fosse vítima de um destino lamentável. Ah! Como todos sofreríamos se aquele ser de escol que junta a beleza à valentia e à moderação tivesse morrido tão cedo! Mas Deus permita que assim não aconteça!

Um cavaleiro não precisa elogiar o próprio braço para dar brilho às suas façanhas. Elas falam por si mesmas.

Lancelote tinha escapado da torre. Mas cambaleava de fraqueza. Com muito cuidado, evitando machucá-lo, a donzela conseguiu colocá-lo à sua frente na mula. Afastaram-se em seguida bem depressa. Mas ela teve a precaução de tomar caminhos pouco percorridos para evitar os olhares indiscretos. Escondem-se temendo que alguém os possa ver e prejudicar. Isso contrariaria muito a donzela que, temerosa, se desvia dos lugares perigosos. Ela chegou enfim a um solar onde costumava ir passar temporadas, pois lhe oferecia conforto e beleza. Todo mundo ali respeitava a sua vontade. Havia muita fartura, ar puro e abrigo garantido. Assim que Lancelote chegou, a donzela despiu-o e deitou-o delicadamente numa cama alta e suntuosa. Depois ele foi banhado e recebeu tantos cuidados que não poderei citar nem a metade deles. Apalpando-o, massageando-o suavemente, com uma dedicação que se poderia dizer filial, ela conseguiu fazê-lo voltar à antiga forma e transformá-lo até num homem novo. Uma paz angelical espalha-se sobre seu semblante. Não parece mais aquele infeliz devorado pela sarna e roído pela fome. Recuperou a força e a beleza. Sai da cama e põe-se de pé.

Dissipa-se a tristeza que se via antes nos semblantes, deixando em seu lugar o júbilo que se apodera dos corações. E a rainha? Mantém-se distante dessas manifestações de alegria? Não, ela é das primeiras pessoas a regozijar-se. Isso vos causa admiração? Meu Deus, o que mais ela poderia fazer? Nada a poderia tornar mais feliz do que aquela volta! Como poderia ficar longe de Lancelote? Seu coração está tão perto dele que por pouco seu corpo não o acompanha. E que faz esse coração? Prodiga carícias e beijos a Lancelote. Por que então o corpo esconde o seu desejo? A alegria dela mescla-se de ódio e amargura? Absolutamente não. Mas o rei e mais de uma pessoa naquela corte estão de olhos bem abertos e poderiam logo perceber o mistério de amor se o corpo aceitasse realizar diante deles o que o coração lhe dita.
Se não fosse o bom senso que a impede de ceder a esse transporte a rainha trairia, ó que loucura rematada o segredo que lhe vai n'alma. Mas a razão domina-lhe o coração e o desejo insensatos. Recupera um pouco o controle e resigna-se a adiar o encontro: esperará o momento oportuno e procurará um lugar favorável e mais escondido onde, melhor que neste instante, poderão os dois entregar-se ao desejado arroubo.

site: http://efemerideseleituras.blogspot.com.br/2014/09/lancelote-ou-le-chevalier-de-la.html
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