Brito 12/02/2021
O Homem que Via Passar os Comboios de Georges Simenon
Este romance não é o que parece ser, mas também não é o que não parece, mas podia tornar-se.
É uma pequena obra-prima, demasiado grande para ser enquadrada, foge aos conceitos habituais como um rio sempre a correr para o mar.
Parece um livro policial, mas não há suspense, sabemos quem é o criminoso, a investigação policial é irrelevante, e o foco está sempre ligado no criminoso, um pequeno burguês que nunca viveu a própria vida, nunca partiu, ficou sempre aquém, acabando por viver a vida que lhe restava, uma vida respeitável, ordenada e é um episódio gratuito de desfalque do patrão, e da falência da empresa onde trabalhava, que o faz tornar-se passageiro de um desses comboios que ele literalmente via partir para o mundo. E a profundidade desta personagem começa logo aqui, porque partiu?, são várias as respostas possíveis, nenhum delas completamente falsa, nenhuma completamente verdadeira, uma coisa é certa, começa aqui a viagem para o auto-conhecimento da personagem, para o arrancar de todas as máscaras que lhe cobrem o rosto, o coração, a razão, as máscaras vão cair todas, uma a uma, até Popinga, agora um criminoso, escrever: «Não há então ninguém que compreenda que era "antes" que eu não estava no meu estado normal? "Antes", se tinha sede, não ousava dizê-lo, nem entrar num café. Se tinha fome, em casa de pessoas, e me ofereciam comida, murmurava por delicadeza: - Não, obrigado!»
Há demasiadas metáforas vivas no caudaloso rio deste romance para que não se torne inevitável lê-lo. É uma óptima leitura.