Gustavo 17/08/2014
Você nunca realmente compreende uma pessoa até considerar as coisas pelo seu ponto de vista, até vestir sua pele e andar por aí com ela
Nunca gostei de histórias superficiais. Histórias que você Lê só para passar o tempo. Gosto daquelas que tem mais de uma camada, que quanto mais você pensa, mais descobre significados. Sempre que termino um livro, pergunto a mim mesmo Que mensagem o autor quis passar com essa história?, e grande parte da minha opinião sobre a obra dependerá da resposta. Com o livro que eu venho falar hoje, praticamente me perguntei Que mensagem a autora NÃO quis passar com essa história?.
O Sol é para Todos foi o único livro escrito por Harper Lee, e eu até entendo o motivo: Ela dificilmente conseguiria superá-lo. Foi publicado em 1960 nos EUA e foi um best-seller instantâneo, lotado de referências autobiográficas. Curiosamente, o melhor amigo da autora era ninguém menos que Truman Capote, famoso por introduzir o jornalismo na literatura, autor de À Sangue Frio e Bonequinha de Luxo, e acabou que o filho único de Lee fez mais sucesso do que toda a obra de Capote, tornando-se um dos maiores clássicos da literatura norte-americana moderna.
Antes de falar sobre sua história, preciso comentar que hoje em dia o livro está mais do que esgotado no Brasil. Você o encontrará em sebos por preços salgados por tratar-se de um livro raro. Porém, nos EUA, o livro é como se fosse o nosso Dom Casmurro: leitura obrigatória nas escolas e conhecido por todos. Por isso, como pode se notar pelas fotos, o jeito foi lê-lo em inglês, que traz o genial título To Kill a Mockingbird, mas falarei sobre seu significado daqui a pouco.
O Livro é dividido em duas partes e contado por Jean Louise Finch, menina de 6 anos órfã de mãe e que age muito mais como um menino, e conhecida como Scout. É todo narrado por ela, o que dá um toque especial e inocente à trama que sob outro ponto de vista poderia ser perturbadora. Ela vive em Maycomb, Alabama, na década de 1930 no sul dos EUA, um dos lugares, na época, mais racistas do mundo. Em sua primeira parte somos apresentados à vida da cidade, ao jeito de sua população, aos mitos e lendas e a maior delas é sobre o vizinho de Scout, popularmente conhecido como Boo Radley, e considerado por todos como um louco que nunca sai de casa de dia desde um incidente de violência ocorrido entre ele e seu pai.
Acompanhamos Scout, seu irmão Jem, de 13 anos, e seu temporário vizinho Dill (livremente baseado em Capote), que só vem visita-los no verão, em suas aventuras, desafiando-se sobre quem consegue chegar mais perto da casa dos Radley, e coisas assim. Até que em um dia, quando o trio tenta dar uma espiada na casa, o pai de Boo dá um tiro pela janela achando tratar-se de um ladrão, e Jem, fugindo, acaba prendendo seu macacão em uma cerca e resolve deixa-lo lá. Depois de um tempo, quando volta para resgatá-lo, ele está dobrado e limpo, como se alguém estivesse à espera de seu dono. À partir daí as crianças começam a notar a aparição de pequenos presentes que são colocados dentro de um buraco de uma árvore que fica na frente da casa dos Radley, e divertem-se divagando sobre a possibilidade de ser Boo quem os está colocando ali.
Porém, tudo isso é interrompido quando um crime choca a cidade: Um negro chamado Tom Robinson é acusado de estuprar uma branca, Mayella Ewell. E antes de você me perguntar como isso afetaria a vida tranquila e inocente de Scout eu já te respondo: Seu pai é um advogado chamado Atticus Finch que é conhecido e adorado por toda a cidade, e ele é quem irá defender Robinson no tribunal. À partir daí a vida da família Finch é abalada por muitas críticas vindas dos moradores de Maycomb, sendo alvos de preconceito quase tanto quanto os próprios negros. Lembrando que Scout tem apenas 6 anos, acompanhamos sua descoberta sobre a podridão humana. Sobre o quanto as pessoas podem ser cegas e imbecis em se tratando propriamente de outras pessoas, e isso por um simples senso-comum que elas têm de que o mundo é dividido entre os sujeitos bons e os ruins: os bons são os brancos e os ruins são os negros. Scout não compreende como isso pode acontecer, pois uma de suas principais figuras maternas é Calpurnia, sua empregada, uma negra da qual ama desde que era um bebê, e algumas das partes divertidas do livro é ver Scout batendo em seus colegas de escola por terem falado mal de seu pai, mesmo sem compreender o que estavam dizendo.
Além do preconceito, o livro fala sobre o amadurecimento das crianças, e na minha concepção, uma de suas mensagens mais fortes é de que o mundo só vai andar quando os adultos pensarem mais como crianças, com sua inocência e pureza.
You never really understand a person until you consider things from his point of view, until you climb into his skin and walk around in it. (Você nunca realmente compreende uma pessoa até considerar as coisas pelo seu ponto de vista, até vestir sua pele e andar por aí com ela, em tradução livre) Pág. 33
Você já percebe que não está lendo um livro de uma autora qualquer no começo, mas quando chega no julgamento de Tom Robinson vê o quanto Harper Lee escreve bem, e é aqui que eu paro de contar a história porque é à partir desse ponto que as grandes reviravoltas da trama começam a acontecer. Com um timing perfeito e personagens de profundidade ímpar, ela consegue deixar uma história que tinha tudo para ser mais uma de o bem sempre vence o mal surpreendente e inovadora. Li o livro em um tempo muito curto simplesmente porque não conseguia largá-lo, e quando acabei precisei de dias e dias antes de escrever essa resenha para organizar meus pensamentos, refletir do jeito certo, pois a história te dá muita coisa para absorver, te faz pensar sobre muitos aspectos da sociedade de uma maneira genial.
No final da história percebemos que o vizinho louco de Scout, Boo Radley, e Tom Robinson têm muito em comum: São pessoas que sofrem pelo preconceito estúpido da sociedade sem nada terem feito. A conclusão sobre Boo é que ele não sai de casa simplesmente por opção, por estar muito mais seguro lá dentro, ele faz isso para se manter distante dos olhos e julgamentos de pessoas que só querem seu mal.
To Kill a Mockingbird é um nome estranho pra quem não leu o livro, O Sol é para Todos, o genérico título dado à versão brasileira faz muito mais sentido em um primeiro contato. Em tradução livre, seria como Matar um Mockingbird, com Mockingbird sendo uma espécie de pássaro que não existe no Brasil. Harper usa esse pássaro para simbolizar tudo de mais belo e inofensivo que existe no mundo. Em uma cena no começo da história, Atticus dá uma espingarda de presente a Jem, e o conselho que vem junto com a arma é o seguinte:
Shoot all the bluejays you want, if you can hit them. But remember its a sin to kill a mockingbird (Atire em todos os bluejays que quiser, se conseguir acertá-los. Mas lembre-se de que é um pecado matar um mockingbird em tradução livre) Pág. 99
E isso já diz tudo. É um pecado matar um Mockingbird. É um pecado atingir algo que não te faz nenhum mal, que só está ali vivendo, sobrevivendo, assim como você. A metáfora sobre o preconceito volta a ser mencionada no final do livro, quando é conectada à um acontecimento impactante da trama, e é aí que você percebe que não poderia haver título melhor para uma história tão boa quanto essa.
O livro foi adaptado para o cinema em 1962 tendo como estrela Gregory Peck no papel de Atticus, trabalho este que o rendeu um Oscar de melhor ator, além de outros dois que o filme ganhou. A adaptação é sensacional, sendo quase tão profunda quanto o livro original de Lee, fiel e com o tom certo em todos os aspectos. Tendo mais de 50 anos de idade, o filme possivelmente pode ter um remake no futuro, pois é uma mania hollywoodiana modernizar as coisas e também pela preguiça das pessoas de ver filmes em preto e branco (tabu esse que já deveria ter sido extinto há muito tempo). Pessoalmente, torço para que deixem o filme como está sem novas adaptações, porque essa antiga está tão boa que se melhorar estraga. Por outro lado, no entanto, um remake era o que influenciaria as editoras brasileiras a relançarem o livro aqui, então nesse aspecto eu fico dividido.
Não preciso nem mencionar o quanto recomendo O Sol é para Todos. Acabei adicionando mais um livro para os meus favoritos (e um filme também!). Mexendo com o emocional e com a concepção mais crua e pura de humanidade que temos, não é à toa que a história de Scout tornou-se um clássico, que com certeza ainda vai tocar muita gente em todas as gerações que estão por vir.