Rosa Santana 02/07/2010
O OUTRO - conto de "O Livro de Areia":
Borges é exímio criador de ficções, querendo e fazendo tudo para dar a elas um caráter de realidade. Ao contrário de "Estão Apenas Ensaiando"¹, em que a vida imita a arte, aqui, n"O Outro" o escritor faz tudo para nos convencer de que os fatos realmente ocorreram!! Esse conto se enquadra na categoria de Literatura Fantástica, justamente porque há nele o caráter de fantasia, daquilo que é criado pela imaginação. Assim é que o eu-narrador idoso encontra-se consigo mesmo, há mais ou menos cinqüenta anos atrás, ou: cinqüenta anos mais novo. E o que ele faz é relatar esse encontro, dando-lhe todos os aspectos de um acontecimento real, inclusive nomeando-se Jorge Luis Borges, para que o leiamos como um conto (ironia!!). E ele, o narrador, na verdade é o homem universal, que descreve coisas que poderiam "ocorrer" com qualquer um de nós: em um banco público, nos pegarmos voltando no tempo e no espaço e fazendo um balanço de fatos que nos marcaram. Simples, não é?
Mas Borges não se enquadra na categoria de escritores que se fixam no simples! Ele vai deixando pistas desse duplo: o rio (ah, Narciso!); as parábolas (todas com duplo sentido); O Sósia (livro que o moço tem nas mãos) a hidra, que se duplica e reduplica, tantas cabeças tem; Jorge Luis Borges, o escritor/Jorge Luis Borges o personagem; Jorge Luis Borges e nós, seus leitores...!!
Achei perfeito o jogo que ele criou, colocando os dois personagens em tempos e espaços diferentes e mostrando que, apesar de tudo: "Éramos demasiados diferentes e demasiado parecidos. [...]Cada um de nós era o arremedo caricaturesco do outro." Porque naquele instante havia entre ambos cinqüenta anos, mais ou menos, que os separavam. Com esse trecho ele volta ao que disse no início, citando Heráclito, famoso por seu "Não nos banhamos duas vezes nas águas de um mesmo rio." Ou seja, aquele que ele foi se parece com o que ele é, mas não é ele, porque o tempo é outro; o espaço, outro. Já foram vividas muitas coisas que separam um do outro. Ou, ainda, como diz o próprio narrador: O homem de ontem não é o homem de hoje.
E o final do conto é brilhante no meu modo de ver! O narrador se justifica dizendo que o personagem novo sonhou o encontro enquanto o idoso o viveu, em realidade. Isso porque o passado é, digamos, mais palpável, mais tangível pois, se passamos por ele, o conhecemos², enquanto que o futuro "é uma astronave que tentamos pilotar...[...] não nos cabe conhecer ou ver o que virá. Ninguém sabe ao certo onde vai dar." Assim, era mesmo impossível o novo ver, em carne e osso, o idoso, porque é impossível ver e se encontrar cara-a-cara com o desconhecido, com o que não aconteceu, com o que está por-vir!
Em "O Outro", Borges nos diz que a "arte imita a vida", narrando para nós um acontecimento insólito, que transgride a realidade, mas o faz de um modo tão racional que nos arrasta com ele, fazendo de nós um duplo seu, de modo a perceber que esse "fato insólito" é, na verdade o espelhamento entre a nossa realidade psíquica e a sua(e nossa!) realidade ficcional!
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¹. Esse texto, de Bernardo Carvalho, foi discutido em um fórum, antes de que se discutisse "O Outro", de Jorge Luis Borges. Por isso, a comparação.
². A esse respeito, há, , no mundo acadêmico, várias análises de "O Outro", tanto na linha da psicologia quanto na da filosofia.
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