LucasMiguel 17/05/2024
A epopeia humana
As grandes obras literárias são aquelas que, partindo de uma experiência particular, articula símbolos universais. Fazer do rio da sua aldeia maior e mais belo que o rio Tejo, como fez Fernando Pessoa.
Hemingway, um dos mestres da escrita simbólica, atingiu quase a perfeição neste quesito que eu aconselho ler de uma tacada só, como fiz nesta releitura.
Aliás, reler clássicos é sempre muito interessante porque, não obstante sejam as mesmas palavras dispostas na mesma ordem, nós já não somos os mesmos desde a primeira leitura e, esta magia alquímica altera o próprio texto.
“O velho e o mar” possui uma história banal: um velho pescador que, estando há 84 dias sem pescar um único peixe, parte sozinho para mais uma tentativa esperançosa de voltar para casa bem sucedido.
Desta forma, praticamente todo o livro se passa no espaço de um barco e o enredo se desenrola dentro da cabeça do pescador que revela todas as suas esperanças, seus medos e suas angústias que são, também, de todo o gênero humano.
Hemingway se tornou famoso por seu estilo de escrita “iceberg”. Assim como o bloco de gelo que mantém a maior parte de seu volume submerso e, portanto, invisível, o autor escreve de uma forma falsamente simples porque esconde o substancial, deixando-o sempre subentendido.
Para que seja possível enxergar o fundo da narrativa, é preciso muita atenção e muita vivência. Somente a idade nos permite entender quão profundas são as águas da experiência humana, infinita de possibilidades, não obstante caibam todas elas em um pequeno barco de um pobre pescador. Por isso, reler o velho e o mar é uma experiência mais tocante que lê-lo.
O pescador Santiago é, dentre todos da literatura com que já tive contato, o que mais eu me afeiçoei. Eu realmente me importo com ele, entendo-o, quero desesperadamente ajuda-lo. Hemingway nos transmite uma humanidade tão grande em tão poucas páginas que chego a acreditar que a literatura não é mera representação, por meio de signos, da vida. Ela é a própria vida.
“O velho e o mar” poderia ser classificado como um livro “anti auto-ajuda”: acredite em você, jogue boas energias em seus empreendimentos, aja corretamente e, ainda assim, a vida pode te arremessar contra o cais; ainda assim, as tempestades tentarão quebrar sua vontade; predadores, reais e fantasmagóricos, destruirão você aos poucos: a vida é uma causa perdida, não há saída porque o fim dela é sempre o Fim.
O texto, embora não deixe explícito, trata sempre da morte. É no insucesso, na humilhação e no reconhecimento da vida como um oceano negro, perigoso e imprevisível que Santiago se reconhece, em uma experiência de epifania, indiferente ao peixe que luta para pescar, indiferente aos tubarões que disputam seu pescado, indiferente às aves que pairam a embarcação. Santiago, portanto, é batizado pelas águas da alteridade na mesma proporção que nós, leitores, porque a experiência literária é, sempre, uma experiência de reconhecimento no outro, nunca em nós mesmos, a razão de continuarmos navegando neste oceano hostil, embora saibamos que, inevitavelmente, o mar nos irá consumir por inteiro.
No entanto, voltar para casa com o peixe tão sonhado não pode, nunca, ser a razão para continuarmos a travessia. Podemos fazer tudo certo e ainda assim tudo terminar errado. O importante é sempre se orgulhar da pescaria, nunca do peixe. A vida é cruel, violenta, selvagem e sempre fatal, o que ela exige da gente, já dizia Guimarães Rosa, é coragem.