alinevianadp 17/01/2022
Um livro curto, mas profundo na multiplicidade de interpretações que carrega
"Se não sais de ti, não chegas a saber quem és".
"O conto da ilha desconhecida" é um conto bem curtinho, com apenas 62 páginas: em meia hora é possível ler o livro todo. Por isso, pode ser uma boa pedida para quem quer começar a se aventurar nas obras de José Saramago, escritor português que ganhou o Nobel de Literatura em 1998 e foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o prêmio (Saramago nasceu em 1922 numa aldeia portuguesa. Foi serralheiro mecânico, funcionário público e publicou seu primeiro livro em 1947, aos 25 anos. "O conto da ilha desconhecida" foi publicado em 1997. O escritor faleceu em 18 de junho de 2010 e deixou uma obra composta por contos, crônicas, romances, poesias, peças de teatro e até livros infantis).
O fato de o conto ser curto, no entanto, não significa que seja uma leitura fácil, superficial ou frívola. Muito pelo contrário: já vi quem tenha intitulado esse livro como "pequeno grande livro", justamente por causa de sua riqueza literária, que vai muito além das suas 62 páginas.
"O conto da ilha desconhecida" narra em terceira pessoa a história de um homem obstinado que foi bater à porta de um rei pedindo-lhe um barco. A casa do rei tinha muitas portas, e o homem foi bater na porta das petições. Acontece que o rei nunca se dava ao trabalho de se prostrar à porta das petições, porque estava sempre muito ocupado plantado à porta dos obséquios (obséquios que as pessoas iam fazer a ele). Quem ficava mesmo plantada à porta das petições era a moça da limpeza. Porém, o homem que queria o barco era bastante obstinado, e não aceitava ser atendido por qualquer outra pessoa que não fosse o rei. Então, ele não arredou o pé do lugar até que o rei fosse escutar a sua petição. Foi a primeira vez que o rei foi pessoalmente atender a uma pessoa que estava na porta das petições, para surpresa geral. Ao ouvir o pedido do homem, o rei logo lhe perguntou por que razão ele queria um barco, ouvindo o homem responder que necessitava ir em busca da ilha desconhecida. Com essa resposta, o rei achou que o homem estava louco: afinal de contas, não existiam mais "ilhas desconhecidas": todas as ilhas já eram conhecidas. Os dois, então, travam um diálogo em que um tem certeza absoluta da existência de uma ilha desconhecida, e o outro acha que a ideia é simplesmente absurda.
Logo no início do conto, quem não está muito acostumado com a obra de Saramago pode estranhar o fato de que as frases não têm muitos pontos finais. São poucos, também, os parágrafos, porque nem mesmo as falas dos personagens são recuadas (e tampouco possuem travessão): elas são apresentadas entre vírgulas. Isso, no entanto, não compromete a compreensão, e ainda contribui para que a leitura seja bastante fluida.
O conto, apesar de curto, é cheio de frases com significado. Outros trechos de que gosto são: "Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter. Ter deve ser a pior maneira de gostar" e "Quero encontrar a ilha desconhecida. Quero saber quem sou quando nela estiver".
Confesso que quando fechei o livro após a primeira leitura, eu fiquei com cara de incógnita. Eu sabia que eu não havia apreendido tudo o que o livro tinha a me oferecer. Aliás, eu sempre digo que o trabalho de compreensão de um livro vai muito além da simples leitura de suas páginas. Então, dias depois de finalizar a leitura, eu achei um artigo que o Contardo Calligaris publicou na Folha de S. Paulo no ano de 2007 ("Ilhas desconhecidas: o amor e a viagem nos fazem descobrir que há algo em nós que não conhecíamos até então"). E ler esse artigo foi fundamental para que eu captasse a riqueza de detalhes que o livro contém (embora Contardo Calligaris não deixe uma resposta taxativa acerca da interpretação do livro - aliás, ele não poderia fazer isso, porque há uma multiplicidade de sentidos. Quanto mais rica e aberta for a sua mente, maiores serão as suas visões sobre a leitura).
É fato: se quisermos absorver o mundo de uma forma mais inteligente, precisamos nos desfazer dos padrões, enxergar nas entrelinhas e recusar certas verdades que são impostas a nós pela sociedade e a cultura em geral. E esse livro é muito ilustrativo disso: porque é justamente isso o que o protagonista do livro faz: de uma forma muito obstinada, ele afirma: "eu vou à procura da ilha desconhecida". Ele não quer saber se a geografia fala que as ilhas já foram todas conhecidas. É um desejo dele, do qual ele vai atrás sem se preocupar com o que as pessoas vão pensar: não interessa se o padrão geográfico do mundo conhecido nos faz acreditar que todas as ilhas já foram conhecidas; o protagonista rompe, ousa, quebra certos padrões e vai atrás de algo em que acredita. Ele quer porque quer desconhecer a ilha desconhecida e principalmente: ele precisa saber quem ele vai ser quando ele estiver nela.
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