Raquel622 12/10/2023De Austen a Camus, não se salva ninguémCultura e Imperialismo - No lugar onde estou na fila do pão de leitores por esporte, me parece que Edward Said advoga a descolonização (ou decolonização, para os que pouco apreço têm pela última flor do Lácio), ou seja, a desconstrução de um ponto de vista firmemente centrado no padrão europeu consolidado especialmente a partir do Imperialismo. Um padrão firmemente fixado num homem branco, europeu e cristão.
Um padrão que mede a "qualidade", o desenvolvimento e, por fim, o valor de outros lugares, povos e culturas por um sarrafo estabelecido unilateralmente. Claro que ninguém fora do eixo Elizabeth Arden é bom o bastante. E, a partir disso, se criam justificativas para novas expansões colonialistas/imperialistas que basicamente ignoram direitos de povos nativos ao território onde habitam há séculos ou milênios e mesmo fazem isso com a desculpa da "caridade cristã". Manja o "salvar a África dos Africanos" ou os "africanos de si mesmos"? É por aí.
Edward Said demonstra que obras que falam dos empreendimentos coloniais europeus por uma razão ou outra, ou ao menos são encomendadas para celebrá-los, nunca serão verdadeiramente críticas do que foi para os nativos das Américas, África e Ásia a invasão e roubo de suas terras, supressão de seu modo de vida e independência por nações europeias, especialmente Inglaterra e França, donas de grandes extensões nos três outros continentes. Entre louvor descarado e a ausência de compreensão da enormidade do que foi feito a tantos povos e culturas Said pretende demonstrar que mesmo quem habita nas periferias dos centros imperialistas naturalmente lhes segue o padrão.
Aí, tomando grandes obras europeias, Said vai dissecando o viés necessariamente de branco europeu que pode até documentar o horror que é a colonização europeia, com sua máquina de expropriação, espoliação e extermínio sem nunca se insurgir ou condenar. Sobra para Jane Austen (Mansfield Park fala de uma família que "enricara" com as plantations caribenhas de cana movidas a mão-de-obra escravizada) e mesmo Giuseppe Verdi que, sendo "periférico", contribui para a mistificação e propaganda sobre o exótico oriente criando um ópera (Aída, a tragédia de uma princesa etíope criada na corte do faraó) para inauguração de um teatro rigorosamente europeu no Egito sob controle de franceses e ingleses - um marco na "ocidentalização" e do processo civilizatório. Processo civilizatório sendo, necessariamente, a adoção e adesão a padrões europeus de cultura e organização social.
Nem Joseph Conrad se salva.
O olhar do branco e, consequentemente as obras culturais que produz não podem se solidarizar propriamente com os povos atropelados pelo imperialismo porque nasceram e se criaram nas capitais alimentadas com os espólios arrancados por ele ao resto do mundo. O ambiente que produziu Austen, Kypling, Camus, Verdi, etc. só pôde existir com a afluência de riquezas a partir de um sistema econômico que pressupunha a condição subalterna, inferior e indigna de seus colonizados.