Toni 04/02/2021
Leitura 07 de 2021
Mar inquieto [1954]
Yukio Mishima (Japão, 1925-1970)
Cia. das Letras, 2002, 166p.
Trad. Leiko Gotoda
Que me perdoe o ser humano que escreveu a orelha para esta edição de Mar inquieto, mas sugerir aproximações entre o romance de Mishima e Romeu e Julieta é uma leitura bem preguiçosa, eurocêntrica e colonizada. Amores "proibidos" são tão antigos quanto a invenção da contação de histórias: o próprio Shakespeare teria se inspirado no texto do frade italiano Matteo Bandello, que possivelmente se inspirou na obra ‘Amanti Veronesi’ de Luigi da Porto, que certamente tirou o argumento de Masuccio Salernitano (nascido quase um século antes do bardo inglês). E a genealogia não para aí: há tanto uma matriz árabe quanto uma matriz indiana para o texto de Salernitano.
Resolvi começar com a contestação acima porque aprisionar ‘Mar inquieto’ à uma história de amor é muito pouco para o tanto de reflexão que o escritor japonês conseguiu inserir ali dentro. O livro é de uma delicadeza quase brutal e, sim, claro, gira em torno do relacionamento entre dois jovens, um pescador e uma mergulhadora, Shinji e Hatsue, ambos moradores de uma minúscula ilha na baía de Ise, Japão. A vida na ilha de Utajima (Kamishima, na realidade) encontra-se indissociável dos humores do mar e da atividade pesqueira, e a prosa de Mishima incorpora elementos naturais e paisagem aos sentimentos e ações de suas personagens. A prosa é tão cristalina e envolvente que em dois dias a leitura chegava ao fim, e meu desejo por algo leve finalmente encontrou vazão.
Mas o livro, assim como o mar, é traiçoeiro. Por trás da simplicidade do enredo há um projeto de exaltação idílica, de valorização da vida simples não corrompida pelo alvoroço das grandes cidades nem impregnada pelo materialismo ocidental, veementemente condenado pelo autor. Neste romance, Mishima alimenta sua obsessão por uma essência japonesa que, aliada a seu posicionamento controverso em defesa da tradição e de valores éticos nipônicos “intrínsecos”, nos deixa amargando entre seu talento narrativo repleto de imagens deslumbrantes e um discurso sub-reptício **deveras problemático** de celebração da pureza.