Luiz Pereira Júnior 07/10/2024
O regional e o universal
Estava percorrendo as prateleiras dos livros ainda não lidos e resolvi pegar um volume de literatura brasileira, pois sempre me faz bem voltar às origens, ler nomes de pessoas que poderiam ser minhas conhecidas e imaginar paisagens pelas quais eu poderia ter passado em alguma viagem qualquer. Então, peguei aquele volume antigo que ficou imprensado entre outros livros, sofrendo com a poeira que se acumula com o passar do tempo – algo que todo e qualquer amante de livros conhece bem (e os frequentadores de sebo mais ainda).
Comecei a ler “Vila dos Confins”, de Mário Palmério, apenas por isso mesmo: por ser o livro que ficava abaixo de todos os outros. Pode parecer que estou desprezando o livro. Longe disso, pois os livros que adquiri há mais tempo sempre acabam ficando na base dos livros, aguentando o peso dos outros – independentemente de seu mérito literário ou de qualquer outro motivo que alguém possa imaginar.
Estávamos a dois dias da eleição para prefeito e vereador (estamos em 2024) e qual não foi minha surpresa ao perceber que o livro trata justamente disso: a primeira eleição para prefeito em uma cidadezinha perdida no sertão de um estado não identificado (provavelmente Minas Gerais, o estado natal do escritor).
Lembrei-me então da primeira vez em que fui eleitor, quando tinha apenas 18 anos e, por um problema qualquer no cartório eleitoral, meu local de votação foi designado para uma comunidade (naquele tempo, favela era uma palavra como outra qualquer) da qual jamais havia ouvido falar e, como eu era o único que tinha curso universitário (incompleto), eis-me alçado a presidente de mesa. Imagine a experiência, ou melhor, a minha completa falta de experiência: um jovem imaturo, que nada sabia do mundo e tendo de lidar com tamanha responsabilidade. Aprendi muito nesse dia e até hoje me lembro do que os outros colegas de votação (que eram meus subordinados no processo) me ajudaram com enorme respeito e bondade. Pois é, nem tudo é “Cidade de Deus”, se é que você me entende...
Também me recordo de que os eleitores que mais demoravam a votar eram justamente aqueles que mal sabiam escrever (lembre-se de que, antes da urna eletrônica, o eleitor deveria entrar na fila, assinar o nome na frente dos mesários, pegar o papel de votação, dirigir-se à cabine eleitoral, escrever os nomes de seus candidatos no papel recebido, depositá-lo na urna eleitoral, voltar à mesa e receber seus documentos de volta), pois precisavam desenhar o nome lentamente. E nisso não vai nenhuma crítica, pois foi o dia em que percebi a enorme importância da profissão que eu havia escolhido seguir. E, se hoje eu sou um bom professor, uma das minhas primeiras tomadas de consciência ocorreu justamente naquele dia de votação décadas atrás...
Voltando ao livro: ao acompanhar as vicissitudes de um deputado para eleger o seu candidato a prefeito nessa cidadezinha, pousando em sítios e fazendas em diferentes graus de pobreza, fazendo conchavos nem sempre moralmente recomendáveis, enfrentando a violência dos donos do poder (os infames coronéis da política brasileira) ao mesmo tempo que arma suas próprias mentiras e traições, Mário Palmério narra e descreve os bastidores do poder como alguém que parece ter vivido e convivido em tais círculos (e deve ter mesmo, vide a biografia do autor).
Ao mesmo tempo, “Vila dos Confins” é de um regionalismo a toda prova: nele acompanhamos as longas descrições das paisagens ao longo das mudanças das estações, as longas pescarias, as festas populares, os causos contados de boca a boca, o pitoresco e o brejeiro dos personagens que por vezes parecem meros arquétipos e nisso vai a comparação com Guimarães Rosa no prólogo do livro (mas isso deixo para você, caro leitor, julgar).
Enfim, um livro que exige um certo esforço, mas que vale a pena para entender melhor o país em que vivemos. Melhor dizendo: os costumes que sempre existiram em qualquer lugar e em qualquer época. Afinal, a corrupção, a violência e a amoralidade não são “privilégios” de nós, brasileiros...