OceaneMontanea 15/01/2010Simplesmente VeríssimoClarissa é o que é. Não tem nada demais, não tem grandes lances de mistério ou de surpresa, não tem histerias amorosas, nem brigas heróicas, mas tem a narrativa de Veríssimo, que mesmo sem tudo isso conseguiu fazer com que o livro se tornasse belo. A história é o cotidiano, os pensamentos e dilemas de uma pré-adolescente, com aquilo que nós todos sabemos: escola, família, poucos amigos, confusões, perguntas, enfim...
Cada momento do livro transcorre sem muito alvoroço, tranquilamente, como nossas próprias vidas. A diferença é que em nossas vidas, nem sempre captamos a beleza de cada coisa. Levamos tudo no prático, com muita rapidez, muita pressa, pouca análise. "Clarissa" tem tudo isso que nos falta. Tem beleza nos detalhes do dia-a-dia, tem calma, tem concentração, e enxerga um mundo que nos é tão corriqueiro, mas que muitas vezes não conseguimos ver (leia-se "sentir" no sentido mais amplo da palavra).
No livro há também Amaro. Um cara silencioso, que vive só com sua música, suas paixões quietas, e que intriga Clarissa. Grande parte das sensações do livro nos são passadas através de seus olhos. É como se Clarissa fosse todo o fôlego da juventude, toda a vida e os planos, e Amaro fosse o retrato daquilo que se frustrou. Um homem, que em sua juventude, assim como Clarissa, sonhou e esperou tudo o que o mundo podia lhe dar, e agora se depara com um nada, com a falta de movimento.
Vai um trecho do livro que retrata esse sentimento:
"Amaro fica olhando para fora, através das janelas por onde a luz do meio-dia escorre. O seu corpo está aqui na sala de refeições da pensão de D. Eufrasina Couto. Mas o pensamento voou para longe. Uma vez há muitos, muitos anos, um menino olhou a vida com olhos interrogadores. Tudo era mistério em torno dele. Era numa casa grande. O arvoredo que a cercava amanhecia sempre cheio de cantos de pássaros. O mundo não terminava ali no fim daquela rua quieta, que tinha um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol, um português que pelas tardinhas se sentava à frente de sua casa e desejava boa tarde a toda a gente. Não. O mundo ia além. Além do horizonte havia mais terras, e campos, e montanhas, e cidades, e rios e mares sem fim. Dava na gente vontade de correr mundo, andar nos trens que atravessavam as terras, nos vapores que cortam os mares. Andar... Nos olhos do menino havia uma saudade impossível, a saudade de uma terra nunca vista. Um dia- quem sabe?- um dia um vento bom ou mau passa e leva a gente. Um dia...
-Amaro, meu filho, que é que você quer ser?
-Marinheiro. Pra viajar. Ou maquinista pra viajar também.
Mamãe sorria e continuava a bordar. Tinha uns olhos bons e um jeito todo especial de olhar para os outros. Papai falava grosso. Tinha bigodões retorcidos e uma enorme medalha de ouro presa à corrente do relógio. -Meu filho, um homem precisa fazer força para triunfar. Só os fracos é que se abatem diante da vida.
Papai dizia isto sempre, com a testa franzida, sacudindo a mão fechada no ar; e a medalha grande dançava contra o colete escuro.
Lutar... Amaro sentia arrepios. Lutar. Luta era sangue. Lutar era ferir e ser ferido. Homens que vencem e são vencidos. Mas que é o triunfo, que significa vencer? Não seria melhor ficar sempre e sempre ali, junto da mãe, na cidade natal, na rua humilde onde havia um cego que tocava concertina, um cachorro sem dono que se refestelava ao sol e um vendeiro português que pelas tardinhas...
-Posso trazer o almoço, seu Amaro?
Na sua frente, Belmira sorri com dentes alvíssimos. Amaro sacode a cabeça afirmativamente.
-Pode.
Enfim... Eram recordações boas. Tudo aquilo tinha ficado muito longe no passado. Verdade é que a gente nunca esquece a infância. Pieguices? Mas, que é que a vida pode nos oferecer de melhor, de mais puro?..."