Coruja 23/02/2011De todas as comédias do bardo, a minha favorita, sem sombra de dúvida, é Muito Barulho por Nada. Não pelo conjunto da obra, veja bem – para mim, o drama de Hero e Cláudio era totalmente dispensável -, mas sim pelas farpas trocadas entre um dos meus mais amados casais literários: Benedict e Beatrice.
De uma forma geral, gosto de casais que começam seu romance (e perduram, com menos intensidade, claro, e com mais humor) às turras, desafiando-se mutuamente de todas as formas possíveis e imagináveis, em geral, em duelos verbais que deixam todos os outros personagens de boca aberta.
Nunca gostei de romances muito melosos do tipo ‘meu docinho de abóbora’ ou ‘minha tapioca com doce de leite’ (O quê? Temos de valorizar os regionalismos!), ou aqueles lenga-lengas em que a mocinha passa o tempo todo chorando e sofrendo e esperando o príncipe encantado resgatá-la.
Pelo amor de deus, qualquer coisa, menos a inútil da Bela Adormecida!
Sim, mas onde eu estava? Ah, sim, Shakespeare. Bem, o caso é... gosto de personagens – e casais – fortes. E tanto Beatrice quanto Benedict correspondem à descrição.
Sempre tive para mim que alguma coisa aconteceu entre eles no passado – talvez da primeira vez em que o Príncipe e seus aliados estiveram na casa de Leonato, quando Claudio, mesmo com o coração voltado para tambores e espadas, percebeu a virginal Hero. A belicosidade que existe entre eles seria totalmente ilógica do contrário.
Para mim, a grande chave do mistério é esta afirmação que Beatrice faz para o Príncipe:
DOM PEDRO — Como estais vendo, senhorita, perdestes o coração do senhor Benedito.
BEATRICE — É certo, milorde; ele mo emprestara por algum tempo e eu lho devolvi com juros: um coração duplo, no lugar do simples que eu havia recebido. Mas, antes disso, ele já mo havia ganho com dados falsos. Vossa Graça tem razão de dizer que o perdi.
Analisem com atenção o que ela diz: Benedict ‘emprestou’ seu coração à Beatrice; ele a cortejou em algum momento e ela devolveu com juros, ‘um coração duplo’, o que significa que ela também demonstrou interesse. Antes, porém, que algo mais pudesse advir disso, ele cortou a ligação.
Esse ‘passado negro’ que existe entre Benedict e Beatrice está presente, sutilmente, em toda a peça – desde o primeiro momento, quando ela pergunta por ele ao mensageiro que vem avisar da chegada do Príncipe, à forma como ele se aproxima dela no baile, reconhecendo-a (ao menos, fica implícito isso...).
As farpas que eles trocam são assim uma mistura de orgulho ferido, desejo, e, claro, inteligência. Eles são, como o próprio Benedict observa, ‘espertos demais para nos declarar-nos em paz’ – o grande defeito de ambos é serem demasiado orgulhosos, pois nenhum aceita capitular perante o outro, nenhum aceita se render primeiro.
É claro, óbvio e ululante que a ‘guerra de destreza mental’ que eles empreendem tem suas baixas – em mais de um momento, eles acabam por se magoar, cortando um pouco fundo demais nos cáusticos comentários. E nisto, não vêem esperança de atenderem aos desejos de seus corações, até que os outros atores da peça decidam lhes montar uma armadilha.
Beatrice e Benedict jamais teriam caído em todo aquele teatro; jamais teriam acreditado naquilo que ouviram, não fosse o fato de que ambos desejavam profundamente que aquilo fosse verdade.
E eis aqui o primeiro nada pelo qual se fez tanto barulho.
E aí partimos para o outro foco da história, o drama de Hero e Cláudio.
Já o disse antes e reafirmo: essa parte da peça era totalmente dispensável.
Depois de casal de briguentos, Sir John é meu personagem favorito. De uma forma geral, adoro os vilões de Shakespeare – eles são profundos, sombrios, cheios de nuances. Embora no momento, no tempo em que Muito Barulho por Nada se passa, ele me faça pensar em Dick Vigarista alisando os bigodes, há algo muito mais sinistro espreitando em seus olhos.
Acho que ele podia ter sido melhor usado – mas, bem, essa é uma das comédias mais ‘leves’ do bardo, então até entendo porque a ação de Sir John não vai muito além de armar toda a patacoada que é o clímax da peça.
O que realmente não me desce bem, é o Cláudio. Não vou com a cara dele desde o momento em que ele se inteira de que Hero é a única herdeira de Leonato:
CLÁUDIO — Poderá Vossa Alteza ora ajudar-me?
DOM PEDRO — Ao teu dispor o meu amor se encontra: dá-lhe lições, para que vejas logo quão facilmente tudo ele assimila, uma vez que te seja de vantagem.
CLÁUDIO — Leonato tem mais filhos, caro príncipe?
DOM PEDRO — Além de Hero, nenhum, que é sua única herdeira. Estás gostando dela, Cláudio?
CLÁUDIO — Oh, milorde! Ao partirdes para a guerra que ora se acha concluída, apenas olhos de soldado lhe pus, aos quais seu todo parecia agradável, sem que a rude tarefa com que então me defrontava dar o nome de amor me consentisse a essa impressão primeira. Mas agora, já de retorno, quando os pensamentos guerreiros abandonam seus lugares, desejos delicados e inefáveis afluem para aí, todos instando comigo sobre o encanto irresistível da bela e jovem Hero e proclamando-me que antes de ir para a guerra eu já a adorava.
Nunca acreditei muito nesse ‘eu já a adorava’ – Cláudio é um soldado, acaba de voltar da guerra, onde fazia sua fortuna... agora que a guerra terminou, não há mais despojos ou soldo para custeá-lo. Mas ali está a conveniente Hero, a única herdeira do nobre Leonato – e é bastante óbvio que isso não é muita coisa.
Pior que isso é que Cláudio nada faz, em nenhum momento, para merecer qualquer consideração da pequena; é o Príncipe que a corteja por ele; quando ele a recebe, ela já está prometida e depois, enganado por Sir John, ele faz aquele papelão na cena do casamento – mais uma vez muito barulho e por uma mentira, uma ilusão, um estratagema ardiloso do vilão. Por nada, por nada... para depois aceitar a ‘outra’ Hero de olhos fechados.
Afinal, desde que ela venha com a herança, que importa que seja uma etíope, ou a mais horrorosa das criaturas?
Eis aí, talvez, a definição de amor que temos nessa peça: entre imprecações, engodos, ameaças de duelo e juras de morte, o amor não passa de muito barulho por nada. É talvez agridoce pensar assim, bem verdade, mas é a mensagem que se infiltra no meio do final feliz, das danças e da música.
Empolguei-me ao reler essa peça (e assistir o filme... e o capítulo correspondente na série Shakespeare Re-Told, que é ótimo!). Verei se escrevo uma resenha para A Megera Domada também...