Lavoura arcaica

Lavoura arcaica Raduan Nassar




Resenhas - Lavoura Arcaica


305 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 |


Clio0 06/03/2015

Esse livro foi indicação de uma amiga, e poucas vezes li algo assim que fosse tão bom.

Prosa, estilo, personagens, situações, história, tudo é bom. Isso mesmo o que você leu, tudo não é só bom, é ótimo.

Estou sendo tendenciosa? Talvez, ler sobre uma família caipira do interior mexe com a minha própria vivência e como muita gente diz, quem lê influencia e interpreta o que lê. Mas acredite em mim, se tem um livro que merecia fazer parte da lista do vestibular, ou representar o Brasil lá fora, ou ainda, sobreviver por mais cem anos, é esse aí.

Quer uma dica? Não leia a sinopse, não vá para a última página, leia a seco como eu li. Vai valer a pena.
Kelen.Cavalcante 03/01/2023minha estante
É uma obra simplesmente fantástica!!!!




Arsenio Meira 10/10/2015

LAVOURA
“O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas [...]” - (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, p. 54)

Basta ler este Lavoura Arcaica para apreender que a obra de Raduan Nassar resulta de uma produção literária tão impactante quanto iluminada. De onde que nada mais natural, a interrogação do leitor para saber as razões que o levaram a abandonar uma promissora (mais abundante) carreira de escritor e isolar-se no campo para se dedicar unicamente às atividades rurais.

Em entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira, Raduan Nassar afirmara que fora a paixão pela literatura que o fizera, por um período de sua vida, dedicar-se inteiramente à literatura, mas, assim como paixão é sempre uma incógnita, tanto o seu começo quanto o seu fim, Nassar também não soubera responder por que renunciara à literatura. Bom, se ele não sabe, eu é que não me atrevo a sequer tecer ilações sobre este fato, triste por sinal.

A força poética presente nos versos, retirados do poema Invenção de Orfeu, de Jorge de
Lima, que servem de epígrafe para a obra, já dá indícios dos eventos presentes nesta narrativa de Raduan Nassar: uma prosa lírica com ações dramáticas, onde não há como apontar um elemento culpado; todos estão fadados a um destino que inviabiliza qualquer mudança, visto que a planta carregada de sedução e viço vem da infância e remete a infâncias passadas obedecendo ao ciclo natural da vida.

É a quebra desse ciclo o elemento central da narrativa. Pela linguagem bem elaborada Nassar é posicionado como pertencente à linhagem dos narradores-poetas. Narrada em primeira pessoa, Lavoura arcaicanão segue a forma tradicional de apresentar o texto de forma linear, embora o leitor consiga apreender o enredo sem maior esforço. Entretanto, o maior destaque da narrativa está na linguagem. A riqueza léxico-sintática, o cuidado e a meticulosidade na escolha das palavras e na construção das frases eleva este escritor a patamares só alcançados pelos grandes nomes da literatura brasileira.

Além disso, a inovação da linguagem em suas narrativas possibilita analisar Nassar como um escritor de fronteiras;por isso, é impossível classificar Lavoura arcaica como apenas prosa: ela é prosa e poesia. Isso aponta para abertura e fechamento do texto. A linguagem utilizada é singular, cheia de densidade,tensão e musicalidade, trazendo para o texto um conteúdo de verdade e uma discussão humana profunda e complexa, capitulados nos versos do poeta Jorge de Lima.

Estes versos também se relacionam com o título Lavoura arcaica. A planta da infância é parte de uma lavoura composta por uma família tradicional que, sob os cuidados de um lavrador incansável, obedece ao curso natural de crescimento com total obediência ao tempo à manutenção da tradição,vistas na narrativa como o alimento necessário para o controle e continuidade daquela lavoura.

A narrativa tem início em um quarto de pensão, refúgio do “filho tresloucado” que deixou o lar paterno para permitir que seu corpo vivesse as paixões proibidas (incestuosa) pela rotina severa da fazenda. É neste quarto que André recebe seu irmão mais velho, Pedro, enviado pelo pai para recuperar aquela planta enferma. É neste encontro que André retoma, pela memória, sua vida na fazenda.

Para amainar sua febre, André buscava na terra o alívio de suas inquietações. Era misturado à terra que ele, adolescente, libertava-se dos olhos apreensivos da família para buscar no silêncio o esvaziamento dos sermões do pai que ele já sabia ser inconsistentes. O silêncio é um dado importante na narrativa.Em Lavoura arcaica,a voz do discurso pertence unicamente ao patriarca, que impossibilitava qualquer tomada de posição da família. Sentado na ponta da mesa, seus sermões eram o alimento que todos deveriam ter, antes de qualquer outro. E o silêncio fazia-se lei. Mas também era matéria de revolta. No silêncio os membros do galho esquerdo do troco teciam sua desordem.

A necessidade de calar os sermões do pai era muito mais alimento para a alma que o próprio discurso. Entretanto, ali naquela pensão, diante do irmão Pedro, eram as mesmas palavras do pai que André ouvia. Pedro, como guardião da tradição e representante legítimo cumpria o seu papel de juntar ao corpo único da família um membro que se desgarrara.

Em Lavoura arcaica o que se deseja é posicionar o corpo antes da roupa. Ter controle sobre seu corpo representava ter controle sobre seu pertencimento no mundo. Ao conhecer os limites do corpo, Ana, irmã do protagonista e sua amante, percebeu as singularidades de sua personalidade. Destituída do poder do discurso, a personagem utilizou os movimentos corporais e sensualidade para posicionar-se naquela sociedade arcaica, revelando que o caminho da autoidentidade passa pelo conhecimento do corpo e pela busca do prazer.

Observa-se que nos conflitos situados na obra de Nassar,a subversão da figura feminina é marcada por conflitos e sofrimento, pois elas ainda se encontram divididas entre os padrões conservadores que ainda lhes são impostos e a urgência de cravar seu lugar na sociedade enquanto sujeito do próprio discurso. Isso mostra que a tomada de posição pode representar, para a mulher, um momento de difícil aceitação,pois inscreve a perda da proteção masculina, tão presente no imaginário romântico da sociedade.

Em um mundo de igualdade crescente, homens e mulheres são levados a realizar mudanças fundamentais em seus pontos de vistas e comportamento. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades; isto é condição necessária para a vida em sociedade. É preciso refletir sobre a condição feminina para acelerar o processo de autoconhecimento e autodescoberta,deixando às mulheres das décadas posteriores, ao menos, uma perspectiva de esperança de que é possível ser livre, ser feliz e escolher seu próprio destino.

O romance de Raduan Nassar encontra-se em um mar aberto de possibilidades de leituras e releituras. Uma abordagem a partir de um único viés teórico, seria simplista, pois deixaria ao largo muito do alcance e da profundidade da obra. Portanto, para quem deseja adentrar na obra deste escritor, é pertinente (re)lembrar o posicionamento dele, posto na epígrafe destas considerações finais: o aprendizado é um processo em construção; ele nunca está pronto. E tal premissa é perene.
Thiago 10/10/2015minha estante
Arsenio, meu caro que bela resenha tu fizeste, eu concordo plenamente com tudo o que dissestes, a propósito se tiveres fôlego vale a pena assistir ao filme do Luiz Fernando Carvalho que se baseou no livro e segue fielmente o enredo da obra do Raduan Nassar , talvez uma das melhores realizações no nosso tão desprestigiado cinema nacional, o filme tem o mesmo título do livro caso tenha interesse.


Arsenio Meira 10/10/2015minha estante
Grande Thiago,
Vou ver o filme, sim, e não vai demorar, amanhã ou terça, no máximo! Já tô na expectativa, depois do seu incentivo e da opinião da Carla, essa expectativa já vai virar ansiedade! rsrs. Obrigado, amigo, como certa vez lhe escrevi, vc é que é grande, generoso! Valeu por tudo. Abração.


Ed Ribeiro 10/10/2015minha estante
Vou ter que antecipar minha leitura deste livro hehe


Arsenio Meira 10/10/2015minha estante
Edi,
Vale demais, faço até campanha, kkkk... Ainda estou sob o impacto. Há, de fato, o livro certo, na hora certa; antes, eu não dava muito trela pra esse tipo de coisa, mas estava errado. No entanto, acho eu, que esse romance cabe em qualquer momento! Boa leitura! Abraços


Thiago 11/10/2015minha estante
Que isso Arsenio, você falando assim me deixa desconcertado, mas o sentimento é mutuo, e eu o admiro muito, até pediria um autógrafo a você se eu o visse pessoalmente hehehe.


Arsenio Meira 11/10/2015minha estante
Thiago, kkkkkk
Se pedir, eu assino!!
(tô brincando!)
Abração


Thiago Ernesto 11/12/2015minha estante
Saudades do amigbo Arsenio... Gostava ter a oportunidade de falar consigo sobre essa obra :/


Alana 06/05/2017minha estante
que delicia terminar de ler essa obra e encontrar uma resenha do Arsenio, saudades.


Juliana 20/05/2018minha estante
Realmente, as resenhas do Arsênio eram incomparáveis!


Emanuel.Giovanni 25/03/2021minha estante
Que resenha incrível!




Cinara... 30/03/2021

... que o tempo sabe ser bom, e o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tenção dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos ele lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede dos sedentos, a fome aos famintos..."

Lavoura arcaica é extremamente poético.
É filho pródigo, é incesto, é família, é tempo e é paciência!
Acredito não ser uma leitura que agradará a todos, mas pra quem gosta de Clarice Lispector super recomendo!
Angélica 30/03/2021minha estante
Eu também amei esse livro. Puta merda!


Cinara... 30/03/2021minha estante
Incrível né Angélica!! ? Aff ?




Bookster Pedro Pacifico 26/02/2020

Lavoura arcaica, de Raduan Nassar - Nota 10/10
Raduan Nassar escreveu apenas dois romances em sua vida, já que desde 1984 decidiu parar de escrever e passou a se dedicar à vida no campo. Mas apesar de uma produção literária tão pequena em termos de páginas escritas, seu trabalho é tão impactante que deixa mais do que justificado o seu papel de destaque na literatura nacional. De fato, a leitura de Lavoura Arcaica deixa marcas no leitor e revela a invejável afinidade que Raduan tem com as palavras.

A obra, publicada em 1975, traz a história de André, nascido em uma família rural numerosa, mas que decidiu abandonar sua casa e se mudar para uma cidade do interior. No entanto, os motivos que o levaram a tomar essa decisão não são revelados logo de cara.

Já nas primeiras palavras, o leitor se depara com um forte tom poético que vai estar presente ao longo de toda a obra. André é o narrador personagem e, logo nas primeiras cenas, somos apresentados ao seu irmão, Pedro, que faz uma visita para tentar convencê-lo a voltar para casa. A partir disso, os capítulos vão se alternando entre os diálogos dos irmãos com as memórias do autor, revelando, aos poucos, a fonte principal dos conflitos internos do personagem e que o levaram a decidir abandonar a família (paro por aqui, para evitar spoilers). Mas já adianto que é uma temática incômoda e que divide espaço com a escrita IMPECÁVEL de Raduan. A sensação é de que nenhuma palavra está lá por acaso.

Por fim, não dá para deixar de dizer que, apesar de encantadora, a escrita não é das mais fáceis. Além de se valer de inúmeras metáforas, o autor utiliza muito a técnica do fluxo de consciência. Ou seja, nos coloca nos pensamentos - confusos e não lineares - do narrador. Você inicia um capítulo e se vê atirado nesses pensamentos, que não terminam até o final do próximo capítulo (vários com apenas um ponto final!). Haja fôlego, mas o esforço é compensado por cada palavra lida.

site: https://www.instagram.com/book.ster/
comentários(0)comente



Vania.Cristina 08/08/2024

Simples, intenso e monumental
Muito difícil falar desse livro. Ele é mais que uma leitura, é uma experiência. É preciso mergulhar nele. Uma sinopse não diz nada, não esclarece bolhufas (como diria minha mãe).

Acho que cada pessoa lerá o livro de uma forma diferente. O primeiro capítulo já me mostrou como ia ser a leitura e logo de cara me posicionei para fazê-la de uma forma incomum pra mim. Conforme ia lendo grifava tudo que me saltava aos olhos. Até aí nenhuma novidade, mas cada capítulo que eu terminava (alguns são longos e outros minúsculos), eu anotava minhas impressões nas margens, naqueles adesivos transparentes. Dessa forma dialoguei profundamente com o livro. E não foi uma coisa pensada, calculada, o próprio livro me conduziu nessa direção. Embora tenha poucas paginas foi impossível fazer uma leitura rápida, ele exigia que eu digerisse capitulo por capitulo, que elaborasse minhas impressões passo a passo. Foi uma leitura profunda e uma experiência intensa mesmo eu não tendo utilizado nenhum texto de apoio para me orientar.

Posso dizer que considero essa pequena obra um monumento. A história é simples, mas a escrita é elaborada de uma forma poderosa. Nós mergulhamos na cabeça do protagonista de um jeito que me lembrou Angústia, de Graciliano Ramos. Posso dizer também que a história me remete a um desses encontros possíveis entre uma tragédia grega com a psicanálise. Entre a realidade nua e crua de Nelson Rodrigues e os devaneios eróticos e místicos de Mishima. E isso tudo pra falar das estruturas de formação do povo brasileiro. Sensacional!

Ficou confuso? Pois é... não sei se posso falar mais do que isso... Tá, posso falar um pouco da história. Não vou dar spoilers mas minha experiência foi totalmente no escuro e valeu a pena. Se quiser um pouco mais de chão, posso dizer:

Em algum lugar do Brasil antigo um jovem chamado André, que morava na fazenda com a família, foge de casa. Este é nosso narrador e é o protagonista da história. Acompanhamos seus pensamentos o tempo todo, e muitas vezes eles são desvairados, delirantes. Seu irmão mais velho o encontra numa pensão, num momento em que ele já tinha gastado todos os seus recursos. O livro tem duas partes, a primeira é o desabafo de André junto ao irmão, quando ele confessa seus segredos. Ele conta tudo com uma certa linearidade, começando com o tormento que o acompanha desde a adolescência. Convencido a voltar pra casa, a segunda parte narra o que acontece nas primeiras horas depois do retorno.

Trata-se de uma interpretação da parábola bíblica do retorno do filho pródigo. Só que aqui o filho não volta arrependido, mas dissimulado.

Esse narrador, jovem e aparentemente frágil, reivindica o direito nobre a sua individualidade, mas não se engane, talvez ele seja um dos personagens mais narcisistas e manipuladores de nossa literatura.

O leitor precisa ter estômago para encarar tudo o que nosso protagonista vai pensar e fazer. Mas a escrita do autor facilita muito, porque as cenas são descritas por palavras delicadas e poéticas, que carregam imagens que nos deixam de boca aberta de tão poderosas. Mas há gatilhos para abuso, vá com cautela.

Eu acho que, dentre outras coisas, esse livro fala sobre nossa origem rural e o patriarcado, e como ele é estrutural em nossa sociedade. O autoritário chefe da família sufoca as individualidades para impor seus valores. O livro acabou e eu continuei a narrativa na minha cabeça. Parece que eu estava vendo a história da formação da elite brasileira. Quando há disputa pelo poder dentro de um patriarcado, nada muda de fato, além do nome de quem está sentado à cabeceira da mesa. Talvez eu tenha viajado um pouco... mas se jogue nesse livro e tenha suas próprias percepções. Se puder fazer isso numa leitura coletiva, melhor ainda.
FabiSempreLendo 08/08/2024minha estante
Ótima resenha! Me deu vontade de ler esse livro.


Vania.Cristina 08/08/2024minha estante
Que bom! ?? Obrigada Fabi!


Max 08/08/2024minha estante
Livro fora do comum!
Resenha no mesmo nível! ?


Vania.Cristina 08/08/2024minha estante
Obrigada Max! ? Também achei esse livro fora do comum.


anapachecoeumsm 08/08/2024minha estante
Quero muito ler! Na USP é um livro que requer debates! Amei a resenha amiga ?


Vania.Cristina 08/08/2024minha estante
Imagino, Ana. Eu adoraria assistir a uma aula sobre este livro e um debate com mediação de um professor da USP. Acho que dá pano pra manga mesmo.


Yasmin V. 12/09/2024minha estante
Amei a resenha, Vania! Esse livro está no meu radar há tempos e dia desses me indicaram novamente e desde então, estou com ele na cabeça hahaha vim atrás de resenhas e encontrei a sua!! Fiquei ainda mais interessada!!


Vania.Cristina 12/09/2024minha estante
Que bom Yasmin! Que você tenha uma excelente leitura!




3.0.3 11/01/2024

A intimidade como princípio de violência
“– Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade.”

Lavoura Arcaica (1975), de Raduan Nassar (1935-), é um romance que narra em primeira pessoa os desdobramentos da fuga de André, depois de abandonar a sua casa na fazenda e a sua família. Pedro, o irmão mais velho, que fica incumbido de procurar André e levá-lo de volta para a casa, encontra o irmão em uma antiga pensão do interior. Aqui, mergulhamos nas memórias do jovem sobre a sua rotina na fazenda e conhecemos os motivos sombrios que corroboraram para a sua desobediência.

A sua descrença em relação aos discursos do pai – que pregam a resiliência, a tranquilidade e a organização –, a sua rotina de trabalho árduo na fazenda da família, a sua relação incestuosa com a irmã foram determinantes para que o jovem tramasse a sua fuga. Na fazenda, era aplacando o seu desassossego junto à terra que André se refugiava das vistas familiares; era se entregando ao silêncio desse gesto que procurava esvaziar os discursos inflexíveis e infecundos do pai. O silêncio, aliás, é um aspecto significativo na obra. Jogando com as palavras, subvertendo os parâmetros da linguagem, André narra todos esses acontecimentos com muita potência – e é esse o seu grito contra a austeridade da família e, sobretudo, contra a presença do pai que o assombra.

Se o silêncio era a regra do pai, era no silêncio que André fermentava a sua transgressão. No convívio da fazenda, era sempre a voz do pai a primeira e a última a se manifestar, inviabilizando a decisão dos demais membros da família. Antes de cada refeição, cada um dos seus discursos – cheios de simbolismos, imagens e moralismo – tinha os seus motivos de existir. Nele, o que realmente importa não é a palavra dita, mas a força da ação e do exemplo. Assim, a figura paterna na obra acredita que a felicidade de um homem necessita da total devoção à tradição familiar, aos seus membros e ao trabalho.

“[...] e mal saindo da água do meu sono, mas já sentindo as patas de um animal forte galopando no meu peito, eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da minha própria história, não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra.”

Defensor e modelo legítimo dos velhos hábitos, Pedro cumpria o seu objetivo de levar de volta para o seio da família a ovelha tresloucada. As palavras que saiam da boca do irmão mais velho ressoavam, por todas as paredes daquela pensão interiorana, os mesmos sermões do pai. Ainda assim, aceitando os argumentos de Pedro, André decide voltar para a casa, e essa atitude faz com que muitos comparem o livro à parábola do filho pródigo. Diferentemente do que acontece no livro de Lucas, onde o filho mais jovem da família volta ao lar depois de gastar toda a sua parte da herança e submete-se às leis da casa, em Lavoura Arcaica, o regresso provoca uma grande instabilidade e termina em tragédia.

A ideia central do livro é fragmentar as engrenagens dessa máquina programada para repetir os mesmos ciclos geracionais. Jogando com o divino e com o mundano, com a harmonia e com o caos, com o velho e com o novo, Lavoura Arcaica apresenta o duplo em diversos momentos da narrativa, e André é a personagem que aperta junto ao peito todas essas sensações contrastantes que estruturam a psique humana. Repleta de alegorias, parábolas, conflitos psicológicos, a intensidade e a profundidade da narrativa suspende-nos a respiração, fazendo com que nos sintamos impotentes diante das circunstâncias.

Lavoura Arcaica é uma obra onde tudo nos atravessa, o sublime e o grotesco. Profunda e densa, a sua leitura busca jogar luz sobre os fantasmas que assombram André. Ainda que o livro seja conhecido por sua prosa poética de alta qualidade, é preciso ressaltar que Raduan Nassar consegue não só conferir complexidade a todas as personagens, mas também situar de forma clara o tempo e o espaço onde as ações se desenvolvem – muito embora o livro não siga as estruturas lineares que a maioria dos livros tradicionais seguem. Com isso, o leitor consegue atravessar e ser atravessado por todas as nuances que compõem a trama.

“[...] eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava.”

Vencedor do prêmio Camões 2016, Raduan Nassar é um mago da palavra. Durante a leitura, compreende-se que a potência da obra reside na linguagem que dança e na gravidade do silêncio que habita em cada pausa. A maneira como ele trabalha a linguagem, ligando vidas, sensações, fluxos e todos os elementos que compõem o corpo humano, seguem um curso sem fim, uma correnteza de energias. Todos os hiatos pulsam, sem dar brechas para os exageros, sem dar trégua para as sensações. Essa precisão léxico-sintática, tão rica ao longo de todo o livro, certamente eleva Raduan Nassar ao panteão dos autores nacionais.

Considerando a sua riqueza e a sua complexidade linguísticas, com estruturas tensas, densas e musicais, é possível compreender Lavoura Arcaica como uma obra que transita entre a prosa e a poesia. Operando nessa frequência, a obra debate questões profundas, onde é impossível encontrar culpados.

Vencedor do prêmio Jabuti em 1976, Lavoura Arcaica é tido como um dos livros mais importantes da literatura nacional. Alguns anos depois, Raduan Nassar deixou de lado a carreira literária para se dedicar às tarefas rurais. Embora a sua passagem pelo cenário literário tenha sido curta, escrevendo somente três livros, Lavoura Arcaica tem fôlego inesgotável. Contundente e iluminada, é uma obra que arrasta consigo profundos pensamentos e desdobramentos, chamando sempre o leitor para novas aventuras nesse campo lavrado de palavras.

“[...] O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina.”

“– Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.”
comentários(0)comente



Bruno Malini 07/09/2021

Muito bom
Arrebatador, um drama familiar com um tensão crescente, escrito em primeira pessoa que te deixa mais ainda impotente .
comentários(0)comente



Bruno M. Silva 11/01/2024

O sagrado e o profano
Lavoura Arcaica é pra todo mundo. É o livro perfeito pra desmistificarmos a ideia de que alguns livros não são para todos porque são difíceis. É fato que a construção da história com períodos compostos longos faz até os leitores mais experientes se perderem se tentarem ler com pressa. Mas esse não é um livro pra se ler com pressa, é preciso degustar toda sua poética, seu lirismo, as construções. É preciso entrar na mente de André, é preciso se sensibilizar mesmo sabendo que ele é um narrador não confiável.

A angústia crescente do oprimido e outros temas que são polêmicos nos faz precisar parar a leitura, as vezes, para refletir. O sagrado e o profano são retratados de forma brilhante, aliás se tem algo em que esse livro é simplesmente perfeito é em sua forma. O controle e a liberdade, a gente ordem e o caos, o amor e o ódio, o sagrado e o profano são só a ponta do iceberg que Raduan Nassar nos traz com sua incrível sensibilidade de descrever temas tão complexos, mas tão simples aos olhos de André.

Uma dica que posso dar é que ou não se incomodem com o vocabulário que são próprios da lavoura, ou leiam no kindle podendo pesquisar as palavras, ou tenham um dicionário (pode ser no celular) fácil por perto. Fora isso é um livro que pode sim ser encarado por todos, é só prestar atenção nos períodos compostos pra não se perder, mas não existe nenhuma dificuldade em sua leitura.

Um dos meus livros favoritos da vida!
Viani_._ 11/01/2024minha estante
Em algum dia desse ano vou tentar ler ele. Vou dá uma chance.?


Bruno M. Silva 11/01/2024minha estante
Não vai se arrepender, Vitória! É ótimo




joaoggur 27/03/2024

O gado sempre vai ao poço.
O título da resenha, de caráter quase bíblico, não é à toa; as citações, desde dos sermões do Pai até as descrições das agruras do narrador-personagem, são de um lirismo transubstancial, - as palavras se metamorfoseiam em parábolas, e ao mesclar do fluxo de consciência com uma poética naturalista, que remonta a Guimarães Rosa, Raduan Nassar desenvolve uma trágica história de decadência familiar.

Assim, o ?arcaico? adjetiva a Lavoura, substantivo que, em metáfora, se traduz como família. André, o narrador-personagem, parte desta Lavoura, da casa de sua família, e as páginas iniciais dão-se quando seu irmão, Pedro, encontra com o supracitado na pensão em que este se hospeda. O diálogo, de uma teatralização fundamental a obra, mistura memórias, sensações e cria uma sinestesia de passado, presente e futuro.

Uma vez suportadas as páginas inicias, creio que é um texto difícil de largar. E ?suportar? não é sinônimo de suplício; o estranhamento se dá pelo texto belo, pela prosa extremamente poética, pelo nada coloquial vocabulário. Essa teatralização, como já citei, tem profundo impacto na obra; é como se o maquinal das relações, a plasticidade dos sermões, a falsa relação de camaradagem familiar, e tudo que mostra a falsidade de um seio familiar fosse transposto para o texto.

Vamos cada vez mais adentrando as minúcias da história, nos envolvendo, - de forma positiva ou negativa, - com os personagens, e chega-se a um ponto em que sentimos um aperto no peito em meio a tantos episódios trágicos. E, talvez, daí vem o belo: ao demandar do leitor uma cirúrgica atenção perante o texto, um olhar apurado das entrelinhas, vamos descobrindo, aos poucos, um áureo equilíbrio entre o belo e o terrível. Terrível pelo conteúdo, belo por como o disserta.

Um romance extremamente exigente, que suga quem o lê. Desejas um conselho? Queria ser sugado. Tenha este prazer, - mas saiba o que estará a diante.
comentários(0)comente



carlosmanoelt 03/08/2024

O arcaico e a ovelha sacrílega
A parábola do filho pródigo compõe o imaginário ocidental como um dos mais conhecidos textos bíblicos. Nela, o filho caçula, arrependido por ter deixado o lar e extravagado seus recursos, retorna ao seio familiar para redimir-se de seus atos. A moral de redenção intencionada pela alegoria cristã foi ? e nada impede que continue sendo ? explorada continuamente em produções artísticas de diversos segmentos, incluindo o literário. Ela servirá como ponto de partida também para ?Lavoura arcaica. No entanto, o que Raduan Nassar manifestamente propõe em seu primeiro livro é invertê-la, mantendo-se distante do ideal de remição passiva e sincera da metáfora original.

André, o protagonista do livro, seria o filho pródigo que abandona a casa. Membro de uma família tradicional e, por consequência, extremamente patriarcal, ele busca libertar-se das amarras paternas e de seus princípios sufocadores que limitam e impõem aos descendentes uma obediência servil cega, corroborada pelo uso de provérbios e pela repetição de hábitos que fortalecem a imagem do pai como totem. A primeira parte da obra, denominada A partida, narra a estadia do personagem em uma pensão distante até o momento em que seu irmão, Pedro, vai ao seu encontro, enquanto a segunda parte, O retorno, mostra o regresso dos dois a casa de origem. A estrutura formal do relato de André acompanhará o caráter cíclico da narrativa. O protagonista não só vai e volta no espaço, como seu relato realiza o mesmo movimento no tempo.

No fluxo contínuo da consciência nem um pouco linear de André nos emaranhamos nas suas entranhas na busca de compreender a si e se desprender de um sistema opressor, na perspectiva dos seu medos e incertezas onde angustiados somos agora parte dessa fortíssima corrente psicológica, da intensidade da paixão incestuosa por Ana, e do seu movimento contínuo rumo a libertação e tragédia. O lirismo de Raduan através de seu personagem faz com que a leitura se torne uma experimentação sensorial, onde sentimos não só o que os personagens falam, mas onde estão, se percebem e sentem. Poucos escritores conseguem mexer com temáticas tão pesadas junto a uma descrição lírica e introspecta tão intensa, assim como Clarice Lispector faz, Raduan inova a língua portuguesa como um escultor que modela, estilhaça e cria algo novo e bonito, nos surpreendendo com o inesperado.

Ler ?Lavoura Arcaica é um desafio que requer coragem e entrega, aos que aceitarem o desafio o impacto será profundo e inegável, pois fala de temas tão universais; do oprimido que sai da opressão, da transgressão, da necessidade de vôos e liberdade, do conflito extremamente sensível de uma família em precário equilíbrio, do amor, da repulsa e paixão, da impregnação moral e da tradição. Com a musicalidade do escrito e do não dito, é uma tragédia que conversa com o contemporâneo através de tudo que nos revela e com poética nos faz questionar certezas tão invioláveis através da experimentação da palavra e de um final destruidor. Cabe mencionar aqui a adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Luiz Fernando Carvalho em 2001, que inspira-se nos princípios barrocos de proporção e da contraposição escuridão/luz para reproduzir visualmente os contrastes tão importantes no livro.
olivversion 03/08/2024minha estante
Que resenha incrível.


carlosmanoelt 03/08/2024minha estante
Obrigado :)


olivversion 03/08/2024minha estante
@carlosmanoelt Dnd, fiquei com ainda mais vontade ler. Lembrei que ouvi sobre esse livro no ensino médio de uma professora de sociologia.


carlosmanoelt 03/08/2024minha estante
Bom gosto o dela, vale muito a pena ler


Jason23 03/08/2024minha estante
Que resenha maravilhosa


carlosmanoelt 03/08/2024minha estante
Obrigado :)




Rafa 29/07/2020

Exímio proveito da Linguagem Estética
No caso de Lavoura Arcaica, o exercício da leitura por si só já é recompensador, desafiador, aprazível, nos enche de orgulho da língua portuguesa. Se não bastasse, o conflito familiar levanta diversos questionamentos sobre os valores sociais.
comentários(0)comente



Eduardo S 08/04/2009

Talvez mais do que a estória, o que mais impressiona é a prosa de Raduan Nassar. Absurdamente poética, de um fôlego ansioso. Não se pode lê-lo sem náuseas, e ainda assim sua escrita hipnotiza-nos. Um marco na nossa literatura; Machado teria se orgulhado dele.
() 22/04/2014minha estante
Será que Guimarães Rosa não teria se orgulhado ainda mais? :)


Nathália 13/01/2016minha estante
Foi exatamente a mesma impressão que tive após a leitura. E concordo com cheesecake~, acho que Guimarães Rosa teria se orgulhado demais!




de.ler.eu.gosto 01/01/2022

Sensível e tocante.
E para encerrar 2021 a última leitura, nada menos primorosa que Lavoura Arcaica.
Publicado em 1975, Lavoura Arcaica foi o romance de estreia do escritor Raduan Nassar.
Escrito em primeira pessoa, em uma forma lírica, André, filho que saiu de casa,melhor dizendo da fazenda onde vivia com seus pais e cinco irmãos, é procurado por Pedro , seu irmão mais velho, para que o leve para casa.
André, revive seus momentos pouco antes de sair de casa, até o seu retorno, para esse lar dominado por um pai severo e metódico.
Para muitos, a escrita de Raduan é um misto de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, pois o autor caminha livremente entre o lirismo e fluxo de consciência ao domínio das palavras .
Na minha concepção, é uma livro pequeno que parece ser rápido mas há muito o que se pausar e refletir.
comentários(0)comente



Clakson 11/07/2023

Poesia e filosofia numa jornada sobre família e liberdade
Cada uma das suas longas frases é marcada por poesia e introspecção.
A lavoura arcaica dos sentimentos e da relação familiar é o mote para essa história que prende em cada capítulo por igual, exceto pelo último que me fez reler várias vezes para ter certeza de cada palavra.
Por conta desse plot twist recomendo a leitura sem nenhuma ideia anterior do que se trata. Deixe apenas o livro contar sua história, que se dá exclusivamente do ponto de vista do personagem principal.
Uma obra pra ser lida de joelhos!
comentários(0)comente



305 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 |


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR