pólen 19/11/2009
Um pequeno ensaio literário sobre o livro Lavoura Arcaica
Ébrio, filosófico, poético, existencial são qualidades deste livro. A narrativa é tecida pelo narrador personagem André, que almeja alçar vôos nunca antes realizados, deseja tornar-se absolutamente único e singular e penetrar o misterioso e profundo desconhecido com as suas indagações sobre o existir. Alceu Amoroso Lima, filósofo brasileiro, certa vez escreveu sobre o livro: “novela trágica, (...) numa atmosfera bem brasileira, mas dominada por um sopro universal da tradição clássica mediterrânea. Drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do tempo”.
O livro é dividido em duas partes: a primeira trata-se da partida; a segunda, do retorno. Isto porque o livro é a parábola invertida do filho pródigo. A prodigalidade é, nesse caso, o excesso e a abundância, ou a partir do meu olhar, é a potência de vida. A afirmação dos desejos mais humanos se efetiva na própria busca de André que almeja ser o profeta da sua própria história e fundar a sua igreja particular. Tal passagem no livro melhor retrata:
“pela primeira vez senti o fluxo da vida (...) e mal saindo da água do meu sono, mas já sentindo as patas de um animal forte galopando no meu peito, eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu próprio uso, a igreja que freqüentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo, pois me senti num momento profeta da minha própria história, não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso!”
Tal trecho revela a singularidade singularíssima expressada pelo personagem, que projeta as suas possibilidades podendo ser si mesmo autêntico. É a liberdade a sua potência de vida e o seu excesso. Nessa abertura de si, expressa pelo ser livre, há a sua imersão ao transe fundo, ao instante marcador da temporalidade originária . O tempo que não é o tempo cronológico, mas o tempo dos tempos, ou o tempo que se eterniza no instante. Essa é peculiaridade do livro: as lindas passagens sobre a compreensão do tempo pelo personagem.
Um aspecto importante é a construção da narrativa. Nos momentos iniciais e na primeira parte do livro (a partida), o personagem relata a sua experiência solitária dentro de um quarto numa velha pensão interiorana e elabora reflexões sobre a angústia, o desespero, o conhecimento que tem do seu corpo; quando o seu irmão, Pedro, chega com as notícias da família e diz que todos aguardam apreensivamente o seu retorno. Durante o encontro dos irmãos, André relata o percurso da sua história e das suas escolhas. No segundo capítulo, o personagem retorna a sua infância, momento crucial que o marcou diante as suas indagações sobre mundo e suas relações na família. Já era nesse tempo que ele se regozijava sozinho longe dos olhos apreensivos da família quando: “amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho. (...) que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera?” Tal passagem revela a sensação de prazer sentida ao entrar em contato com a terra, com o movimento das folhas, o zumbido do vento nos galhos das árvores... Era o mundo ao redor o seu encanto, a sua plenitude; por isso o seio do lar se apresentava como uma concha que ao mesmo tempo acolhia-o e aprisionava-o. Quero dizer que já quando criança buscava algo que não havia na família, parece-me que ele tinha uma busca interior profunda.
Ainda ao recordar da sua infância e adolescência, ele relata para o seu irmão o valor que o pai tem para si. Este é o signo da permanência, tradição e austeridade em que pisa sobre pilares essenciais: a união, o trabalho e a verdade. Em um trecho do livro, o narrador-personagem André fala: “tudo em nossa casa está impregnado pela palavra do pai”; e quando todos da família estão sentados a mesa durante as refeições, o pai os orienta por meio do seu discurso as regras da ‘boa saúde’ . É por meio “da mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada solenemente em cada dia, fazendo do desjejum matinal o nosso livro crepuscular” ; em que são tecidas as diferenças entre perspectivas – a do pai e a de André. E aqui vale a pena trazer a tona tais diferenças. Enquanto o primeiro buscava manter a tradição, o arcaico e o comedido; o segundo, a liberdade, o desvio e o excesso (abundância).
A voz do pai muitas vezes se confunde com a voz do narrador quando se refere ao tempo. Este é o absoluto e o infindável, no seu curso é capaz de mudar a disposição das coisas, pois a sua natureza é metafísica e sem marcação de inicio e fim. O tempo é o tempo da espera, do agir no momento exato sem precipitar. No capítulo nove é perceptível analisar tal fator relacional (o tempo e o pai):
“Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os cinos graves marcando os horas: ‘o tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é o pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; (...) rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu piedoso e humilde, a conviver com o tempo”.
Nessas passagens há grandiosa sabedoria, o narrador e o personagem Pai nos ensinam a valorizar a forma de como vemos a vida e o modo de como podemos nos posicionar diante dela. A descrição do tempo se mostra dentro de uma potencialidade terapêutica. Ao saber dosar a quantidade necessária de percorrer com equilíbrio diante as próprias escolhas, é possível alcançar a maior das virtudes que o homem é capaz: a paciência. “O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo (...) porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser ágil”.
Nesses trechos, André observa o momento preciso de tomar sua decisão ao conseguir vagar e deslizar sobre um tempo metafísico e poderoso. Ao perpassar entre a espera e o seu projeto, submerge em seu transe fundo e reflete: “embalando nos braços a decisão de não mais adiar a vida” (idem). O que marca é a sua decisão, é a sua partida. O desvio da união familiar que o oprimia por vários motivos: a austeridade do pai, o transbordamento afetivo da mãe, e a paixão pela irmã.
A narrativa do livro permeia várias temporalidades: passado, presente, instante, salto (futuro). Isto é, há uma alternância de fatos do presente, fatos do passado, reminiscências que se atualizam no discurso do personagem e o salto da decisão (que pode ser entendido como um projetar futuro). As primeiras passagens retratam André e seu irmão, Pedro, numa pensão; e a partir da tentativa de trazê-lo de volta a casa, o protagonista relata toda a sua história e explica ao seu irmão o contexto de sua fuga. Quando se remete a infância, lembra-se muito da mãe, da sua fé, das suas brincadeiras com a pomba branca – signo da pureza e luz divina (no caso). Nos relatos da sua adolescência, há um misto de embriaguez, paixão, confusão e o temor da rigidez do pai. Como já foi falado, André também desejava desde criança buscar algo essencial e não sabia denominar a natureza da coisa em questão, posteriormente esse sentimento foi ganhando teor, substância e foi sendo transformado numa contundência em resistir e reivindicar a sua própria potência de vida.
Ainda no quarto com o teu irmão, André lembra-se de Ana, a sua irmã, e quase por um sobressalto lhe ocorreu a sua primeira crise. Ao relatar todo o seu percurso com furor decide falar sobre o seu caso com a irmã (que, talvez, potencializou o motivo de sua fuga): “Era Ana, era Ana, Pedro, a minha fome (...) era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” . A irmã compartilhava as suas buscas e anseios desde quando era menino. A passionalidade é a característica mais marcante do personagem, quiçá seja o ponto de embate com o equilíbrio proposto pelo pai. E André vibrou com força ainda mais potente, quando se envolveu incestuosamente com um membro da família. A mãe já era o investimento de suas implicações passionais quando criança, então, com base numa interpretação minha, percebo que houve uma substituição da mãe pela irmã.
Após um longo percurso discursivo em que são entremeados presente, passado e futuro, e depois de relatar toda a sua intensidade plural e única ao teu irmão; André decide retornar a casa. Todos o aguardavam com grande expectativa e decidiram realizar uma festa para comemorar a chegada do fujão. Durante essa passagem, o protagonista e o pai dialogam. E penso ser o diálogo mais belo da história da literatura, pois mostra a complexidade relacional entre pais e filhos, entre diferentes anseios, entre a liberdade e a tradição, sob a égide dos tempos.
Filho: “Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade”.
Pai: “Corrija a displicência dos teus modos de ver: é forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família, que só um insano tomaria por ambiente hostil.”
Filho: “Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida” .
É por meio dessa profundidade dialógica que André decide contribuir para preservar a união da família. E se permite obedecer a soberania incontestável do tempo. Os trechos finais são de uma ‘tragicidade’ quase grega, em traços comuns pode se remeter a Édipo Rei ou a Prometeu Acorrentado. No último capítulo, Ana se cobre com todos os adereços mundanos da caixinha de André e por meio de seu ímpeto de vida dança uma violenta e ébria convulsão do corpo ao lembrar uma prostituta errante. Todos da família se assustam e o pai, ao não agüentar ver a situação decide matar a filha. E onde está a união da família?
Era como se o sobrevôo dos intempestivos fosse podado pela lâmina de uma foice.