Bea 22/07/2024
A ambição de Julien Sorel
Aqui vou escrever a minha curta opinião e complementa-lá com trechos mais elaborados e coerentes dos posfácios de Leyla Perrone-Moisés e Henrich Mann.
Dos poucos livros da literatura francesa que li, três de Hugo e um de Dumas, O vermelho e o Negro se firmou como o livro mais complexo de todos. Apesar de capítulos curtos, tenho que confessar que achei a leitura muito densa, contraditória e as vezes, maçante. O que mais me marcou foi a contradição de pensamentos e ações dos personagens, pois não me permitiam formular uma opinião sobre os acontecimentos narrados. Apesar disso, achei genial o autor construir seu livro com essa linha psicológica x ação. Ademais, foi um livro difícil de concluir.
De acordo com Leyla Perrone-Moises « Stendhal pode não ter tido uma visão clara da modernidade: a obra como esboço, o enfoque fenomológico do real, a perda do ponto de vista monocêntrico, a fragmentação do sujeito psicológico, a sinceridade como máscara, o nome como pseudônimo, o passado como prazer de reconstituição e o presente como vertigem de perda. São esses traços que constituem, para nós, nosso contemporâneo Stendhal.
Julien Sorel é o melhor exemplo do herói infeliz do romance ocidental, aquele que busca a totalidade e a autenticidade num mundo degradado em que esses valores estão ausentes. » De acordo com Heinrich Mann « Esta é a história de uma força tremenda, porém reprimida. Essa força vive e age a despeito de toda a autoridade da ordem estabelecida, que não lhe abre espaço nem lhe dá direitos. Vive ilegitimamente e age como explosivo. Julien Sorel, um dos jovens mais aptos de sua geração, precisa se fazer padre, mesmo sem ter fé, pois só assim um burguês comum pode alçar a cargos elevados. Precisa tornar-se secretário de um ministro, mesmo odiando o sistema dominante. Com a filha do ministro, tem um caso sem perspectivas, mas tempestuoso - em termos sociais, ele é doméstico. Ele também ama, de outro modo mas com toda a intensidade, a doce mulher de um industrial da província, para o qual ele é um pedinte. Julien cobiça tudo o que está acima dele mesmo, sua paixão é sempre mesclada de ódio. É ardente, precisa ser astuto; odeia seu destino, e por isso odeia a todos os outros. Luta da única maneira possível, debatendo-se. E nesse debate desesperado está a ponto de perder a autoestima quando, por fim, comete um assassinato. Uma espécie de morte voluntária, à qual arrasta a doce sra. de Rênal. E acaba na guilhotina.
Neste romance, leva-se a julgamento a ordem que permitiu que tudo chegasse a tal extremo. Um dos jovens mais aptos de uma geração teve de passar sua curta existência na hipocrisia; o resultado foi um assassinato. É a mais terrível acusação jamais levantada contra uma era. Tanta paixão, uma força de vontade capaz de grandes feitos: tudo sacrificado em vão, consumido com violência. O abuso e o desprezo renitente com que o poder dominante trata a força humana são aqui mostrados em tempos de paz. Desde então, sabemos qual é o resultado disso em tempos de guerra: o mesmo. Julien não foi mais bem tratado do que a juventude estralhaçada na guerra, com seus corpos voando pelos ares. Já abusaram muito de nós, na guerra e na paz.
Os contemporâneos acolheram Victor Hugo; ao contrário de Stendhal, nos prefácios a seus romances ele não precisava advertir ao leitor que não o confundissem com seus heróis criminosos. Pois, enquanto o criminoso de Hugo era vítima da sociedade, o de Stendhal assumia a responsabilidade por si mesmo, sem arrependimento. Stendhal foi tido sobretudo por associal, e esse é o principal motivo da desconfiança e do fracasso que experimentou. É exatamente isso que volta a ser compreensível nos tempos de hoje, quando se abusa da tendência à congregação espiritual. Para um escritor, dispor de um espírito comunitário não significa nada; tanto para ele como para a sociedade, só interessa saber se ainda será lido pela posteridade. Nesse caso, esse indivíduo isolado, mais forte que qualquer constituição comunitária, esse indivíduo terá lançado pontes entre gerações que, caso contrário, não se conheceriam. Sem Stendhal, quantos aspectos da sociedade e que viveu não pareciam obscuros e impenetráveis a nossos olhos? Muitos de seus personagens já antecipam nossa própria vida, porque sabem quem são. »