Luigi.Schinzari 28/08/2020
Algumas palavras sobre O Vermelho e o Negro
Os apaixonados por história possuem um sentimento em comum além de seu amor mútuo: cedo ou tarde, terão uma percepção de que vivem em um momento errado da cronologia humana. Queríamos ter conhecido grandes personagens influentes para nosso modo de visualizar a vida, como os pensadores gregos e latinos, ou gostaríamos de nos deliciar com o clima leve de épocas, aparentemente, melhores que a nossa como, por exemplo, a Belle Époque. O mote (um deles, pelo menos) do romance O Vermelho e o Negro (1830), do francês Henri-Marie Beyle (1783-1842), mais conhecido como Stendhal, é justamente esse anacronismo pessoal, focado no sentido pelo protagonista, Julien Sorel, e sua falta de pertencimento em relação ao momento em que vive e a sua admiração controversa pela figura de Napoleão, a época reprovável por uma França prestes a adentrar em mais uma revolução.
A história do jovem Julien, jovem descrente que estuda para se tornar um padre por conta das fronteiras que pode transpassar com sua posição religiosa, e aficionado pelo então falecido imperador corso em um momento em que sua atestar sua admiração por ele seria motivo de extrema reprovação social e como vai galgando posições dentro da sociedade (inspirado mas de modo diferente de sua inspiração, logo mais voltaremos a isso), por meios pragmáticos e muitas vezes calculistas, enquanto se envolve em romances, trabalhos e intrigas -- essa história é das mais conhecidas e reverenciadas que a França, celeiro de algum dos maiores clássicos, já nos proporcionou. Stendhal, autor tardiamente reconhecido, nos coloca em meio a uma confusão mental dentro não só da cabeça de seu protagonista. São contradições, hipocrisias, tiradas, ironia -- não a toa tratam O Vermelho e o Negrocomo o primeiro romance psicológico da literatura ocidental.
A maestria do escritor está não em ser capcioso e nos confundir em um emaranhado de pensamentos desconexos com o único e caprichoso intuito de demonstrar a complexidade de suas construções literárias; por cada página Stendhal narra uma linha de causas e consequências lógicas para aquele núcleo, e nos atém presos aos conflitos morais que eles possuem, principalmente nas figuras do supracitado Julien e suas duas musas, a Sra. De Rênal e Mathilde de La Mole. Julien, primeiramente, sente-se perdido em seu tempo: reconhece sua inteligência mas percebe que seria muito mais celebrado caso vivesse no período em que Napoleão governava, pois poderia utilizar sua mente para fins militares, sendo justamente por isso que resolve buscar na religião o meio de alcançar suas metas; já Mathilde sonha em viver um romance idealizado com alguém -- e este alguém vira (e não é) Julien, apenas pelo acaso -- aos moldes do vivenciado por Margarida de Navarra e seu antepassado Boniface de La Mole (figuras históricas e que serviram de inspiração para um livro de Alexandre Dumas); a Sra. de Rênal, por outro lado, sofre por conta de sua paixão adúltera pelo jovem Sorel, enquanto se martiriza por seu ato e por sua fé até o fim da obra. É este o cenário, imerso em tramas da aristocracia francesa e suas intrigas e personalidades fúteis e mesquinhas, por vezes, e nobres e autênticas por tantas outras.
Está posta a mesa para este banquete servido por Stendhal. Conhecendo o contexto, fica claro, mesmo não estando nos planos do autor -- pelo menos não sabemos se Stendhal era um vidente ou algo do tipo --, como estavam exaltados os ânimos dentro da França em seus momentos prévios a Revolução de 1830, que tratou de colocar Luís Felipe como Rei, chamado de Rei Burguês, um monarca, a princípio, com visões mais liberais. A maestria narrativa e a complexidade deliciosamente traçada e detida pelo autor de A Cartuxa de Parma, seu último romance, é uma aula de boa literatura. Pegamo-nos, ao fim da leitura, nos perguntando sobre dois temas tão díspares -- a verdadeira felicidade e a idolatria pelo passado -- mas que, no contexto, fazem tanto sentido estarem juntos tal qual a nuvem e o céu, que percebemos quão poderoso foi o livro lido.