Quincas Borba 10/05/2024
"Havia sido esse o destino de Napoleão:
Seria o seu, um dia?"
"O vermelho e o negro" ("Le rouge et le noir") é um romance histórico psicológico francês escrito por Marie-Henri Beyle, mais conhecido pelo seu pseudônimo Stendhal. A história segue Julien Sorel, um provinciano francês vivendo na década de 1820 durante a Restauração dos Bourbons, que busca subir na sociedade francesa combinando inteligência, frieza e hipocrisia; entretanto, suas paixões arrebatadoras fazem com que ele traia a si próprio.
Eu tinha altas expectativas para ler essa obra: poderia dizer que fiquei decepcionado, mas não foi uma grande decepção; porém, existem certas partes que me deixaram, francamente, entediado. Particularmente as partes demasiadas românticas; claro, entendo o contexto no qual e a época em que o autor escreveu, mas é apenas meu viés anti-romantista falando; preferi muitas vezes os solilóquios de Julien do que suas tentativas de se relacionar com suas amantes, embora entenda a importância desses momentos para seu desenholvimento. Entretanto, apesar desses problemas pessoais, gostei bastante da obra, e direi que me surpreendi com diversas ideias modernas durante a leitura.
Julien Sorel é um personagem extremamente complexo; digo que levará algumas releituras para que eu possa criar minha própria versão interpretativa dos recantos da alma desse homem. Talvez seja outro viés meu falando, o viés do amor à história, mas minha parte favorita do romance foi a presença quase onipresente de Napoleão em todos os aspectos, algo que podemos ver em Julien: tudo na sua vida parece ser um campo de batalha, onde ele se vê como um jovem Bonaparte prestes a ascender, conquistando territórios e firmando alianças, derrotando inimigos e criando aliados. A divisão interna do personagem, explorada maravilhosamente por meio de solilóquios, me ganhou; às vezes, esqueci que esse romance foi publicado em 1830, ano da deposição do despótico Carlos X, pois quantas ideias modernas psicológicas encontrei ao analisar o retrato do sr. Sorel! Sua luta interna entre o seu lado racional, frio e calculista, e o seu lado emocional, arrebatado pela luxúria e pela paixão, me lembram bastante as ideias de um certo filósofo alemão envolvendo Apolo e Dionísio.
Dito isso, o narrador não toma nenhum partido, embora assuma diversos pontos de vista, muitas vezes sem avisar, deixando ao leitor a tarefa de descobrir quando o narrador está falando ou não, outro conceito extremamente moderno e inovador; assim, o narrador explora diversos pontos de vista sem afirmar o seu, possibilitando uma variedade de interpretações (até interpretações que eu considero particularmente infelizes, como a do posfácio de Heinrich Mann, que, anacronicamente, denomina o regime napoleônico de "fascista" sob a ótica do narrador).
Stendhal é um autor único, tal qual outros grandes nomes, mas único em que não podemos atribui-lo a uma escola literária ou a um tipo de romance específico. Pode-se muito bem por-lhe o rôtulo de um autor do romantismo, bem como de um autor do realismo, ou o inventor do romance psicológico moderno; mas todas essas afirmações tem tantas contradições que tornam Stendhal um caso raro de autor inrotulável ao meu ver. Se por um lado o narrador não idealiza, como no romantismo, os personagens sim; se por um lado o narrador mostra a vicissitude repugnante da sociedade durante a Restauração Bourbon, os personagens, principalmente Julien, também o fazem, mas disfarçam com sua hipocrisia, dando mais e mais camadas aos personagens. De fato, eles parecem bem mais humanos em alguns momentos, enquanto em outros são extremamente idealizados, tornando todos os personagens, principalmente o jovem Sorel, pessoas extremamente complexas, como se fossem uma representação fidedigna do autor.
O conflito entre o vermelho secular e o negro da religião compõem as críticas de Stendhal à sociedade francesa da Restauração. Resumindo todas as críticas, ele (o narrador) acusa absolutamente todos de algum pecado, todas as camadas sociais e econômicas, enquanto também as defende; longe de ser contraditório, isso apenas mostra ainda mais a versatilidade de Stendhal (outro ponto infeliz em outro posfácio, o escrito por Leyla Perrone-Moisés, que afirma que a única falta de Stendhal seria não perceber a luta de classes, uma afirmação pretensiosa e infeliz ao meu ver, mesmo sendo não tão grave quanto a afirmação de Heinrich Mann; dizer isso sobre uma figura como Stendhal é bárbaro no mínimo, embora tenha sua base para afirmação).
De resto, é um romance excelente e vale a pena a leitura. Recomendaria apenas uma bagagem histórica para entender certos acontecimentos e nomes.