spoiler visualizarRobson 12/02/2011
Autor escreveu tratado sobre o amor e o ódio
Não se sabe ao certo o que Stendhal queria dizer com o título de sua obra mais influente, O Vermelho e o Negro. Muitos diriam que o negro é atribuído à cor da batina do protagonista e o vermelho ao sangue em que esta é lavada após a guilhotina; ou a batina em contraste a farda militar, vermelha na época de Napoleão; ou simplesmente à morte e à paixão que estão presentes na trama, Certo é que Stendhal conseguiu escrever um tratado sobre o amor e o ódio na psique humana e sobre uma sociedade que arrebenta todas as ambições de um jovem em dúvida com seus anseios com a mesma frieza que o faz com os soldados na guerra.
Julien Sorel é o protagonista, nascido numa cidade inventada pelo autor chamada Verrières, no interior da França. Oprimido pelo pai marceneiro, pelos irmãos e pelo trabalho braçal, Julien decide pela batina como único meio de um jovem de origem “baixa” ascender a alta sociedade. Ele se dedica ao estudo das escrituras sagradas e do latim e, por isso, é recompensado por sua dedicação, sendo levado para ministrar aulas aos filhos do prefeito, o senhor de Rênal.
Ele adentra a mansão com a mesma delicadeza que se crava no coração das pessoas. Sorrateiro, ardiloso e frio, acaba se infiltrando na vida da família. Ao conhecer a sra. de Rênal, esposa do prefeito, terá o seu primeiro e único amor correspondido durante toda a vida – ela apaixona-se pela inteligência e ternura do rapaz, ele pela posição social dela. Ela é uma esposa discreta e mãe devotada; ele, um jovem ambicioso, porém meigo, que executa seus planos com a frieza de uma aranha que tece uma teia.
Seu ídolo é Napoleão Bonaparte, o único herói invencível, que consegue tudo o que quer com o poder da vontade e das armas. Tivesse nascido duas décadas antes, pensa o rapaz, poderia ter servido nas fileiras do ídolo, galgando posições que lhe dariam dinheiro, prestígio e poder.
Como o faz seu ídolo, ele cria inúmeras estratégias para conquistar a sra. de Rênal, a aristocracia e também toda a França.
O rapaz se sente repelido e involuntariamente atraído pela sociedade parisiense. Ele tenta se ajustar entre os nobres em vão, sendo sempre tratado como inferior, até pela amada sra. de Rênal, com quem terá um romance repleto de cenas dignas de Shakespeare – com encontros soturnos na madrugada, escadas na sacada do quarto, empregados que desconfiam e criam intrigas. Logo o romance entre o jovem padre e a sra. de Rênal se torna um escândalo. Julien parte para Paris, onde se apaixona por Mathilde, filha de um marquês do qual ele é secretário. Eles se tornam amantes, Mathilde engravida, o que faz com que o marquês conceda a Julien um título de nobreza, desejo há muito presente nos anseios do jovem. Mas o que poderia selar um destino feliz apenas retarda a inevitável tragédia.
Reviravoltas acontecem, e Julien acaba sendo punido por sua audácia e ambição. A própria sra. de Rênal envia ao marquês uma carta denunciando Julien como um aproveitador de mulheres, interessado apenas em fazer a própria fortuna. Este tenta vingar-se dela, mas acaba preso e sentenciado à guilhotina. Não sem antes declarar seu amor à sra. de Rênal, que morre tempos depois.
Em alguns ensaios, é dito que Stendhal apreciava simplicidade nos conceitos literários e dizia que “a simplicidade é o que há de mais sofisticado”, talvez seja exatamente esse “talento” que se omite na percepção de conceitos como a vida e a sociedade em seu protagonista.
O que Stendhal não dizia é que para se chegar a essa tal simplicidade é preciso escrever bastante, de modo que a escrita seja tão natural quanto qualquer outra coisa que façamos em nosso cotidiano.
Percebe-se lendo O Vermelho e o Negro, que estamos desfrutando de uma obra-prima totalmente equilibrada e que não destoa um segundo sequer de seu tom dramático: aqui acompanhamos os personagens em suas divagações, pensamentos e opiniões distintos uns dos outros, isso já foi feito em outros livros (deve-se reconhecer), mas a forma como o escritor os expõe é simplesmente brilhante, aqui cada personagem tem seu espaço para se impor, de modo que você possa acompanhar tanto os pensamentos e anseios do protagonista como de qualquer outro presente na trama, sem que isso possa parecer forçado ou demasiado tedioso (em outras palavras o escritor não se detém em retratos pormenorizados de seus personagens: ele os deixa agir e pensar. Eles se definem na relação que estabelecem uns com os outros).
Sua prosa, na minha humilde e modesta opinião poderia ser chamada de “perfeita”, e isso não pode ser atribuído a nenhum outro escritor (nenhum mesmo, por melhores que sejam), nesta obra, nenhuma nota parece sair do ritmo ou distorcer sua prosa seca e objetiva. A narração segue seu desfecho como uma linha reta, quase sem desvios ou rodeios. As ações se encadeiam naturalmente, sem que o leitor perceba a “manipulação” do escritor, variando com habilidade os pontos de vista por meio de diálogos curtos, monólogos interiores dos principais personagens e descrições breves e precisas.
Veja um exemplo: Livro II, Capítulo XVIII: Tampouco é o amor que se encarrega da fortuna dos rapazes dotados de algum talento como Julien; eles se vinculam estreitamente a algum círculo e, quando esse círculo faz sucesso, todas as boas coisas da sociedade chovem sobre eles. Infeliz do homem de estudos que não pertence a algum círculo, irão codená-lo até pelos pequenos sucessos mais duvidosos e a virtude elevada triunfará, roubando-o. Pois bem, senhor, um romance é um espelho que se carrega ao longo da estrada. Tanto pode refletir para os seus olhos o azul do céu como a imundície do lamaçal da estrada. Por acaso o homem que carrega o espelho em sua sacola poderia ser acusado de imoral? Seu espelho mostra a sujeira e o senhor acusa o espelho? O senhor deveria acusar o longo caminho onde se forma o lamaçal e, sobretudo, o inspetor das estradas que deixa a água apodrecer e o lodo se acumular.
O problema de Julien, com o qual ele definitivamente não conseguia lidar é que: o erro dos homens grandes é julgar a vida a partir de sua imaginação, em muitas situações do cotidiano, sejam elas vivenciadas na alta sociedade ou não, suas escolhas podem sim necessitar de algum senso prático; você deve encarar e aceitar que a vida não é feita somente de abstração, caso contrário estará fadado a viver em uma fantasia que nunca irá se realizar.