Fabio Shiva 20/06/2021
os alquimistas estão chegando!
Certos livros chegam na hora certa. Foi alguma intuição profunda que me motivou a ler esse romance histórico de Marguerite Yourcenar, que é embasado por muita pesquisa e entremeado por muita reflexão filosófica e cuja ação se passa na Europa do século XVI, durante a lenta e dolorosa transição da Idade Média para o Renascimento. Pois quem diria que a saga do alquimista, médico e filósofo Zênon, em sua tortuosa busca pelas luzes do conhecimento em meio às trevas da ignorância, iria me ajudar a compreender um pouco mais as angústias e incertezas que estamos vivendo no Brasil e no mundo nesse ano abençoado de 2021!!!
Uma pista importante foi dada por Yourcenar (nome que achei interessante descobrir ser um anagrama para Crayencour, sobrenome original da autora) em seu posfácio, onde ela explica que a trama da história acontece entre as múltiplas e intricadas tensões da Reforma e da Contra-Reforma, acrescentando que esses fatos eram “muito amplos para serem vistos pelos contemporâneos”. Ler isso me deu um estalo, pois por diversas vezes, ao tentar compreender fenômenos para mim inexplicáveis como o bolsonarismo, que estamos passando por transformações sociais, psicológicas e, principalmente, espirituais, que são vastas demais para serem compreendidas em sua totalidade por nós, que estamos passando por elas, sentindo-as em nossa própria carne. Muitos têm chamado esse processo de Transição Planetária (https://youtu.be/Tvi8d5MHJoY).
Foi estranhamente reconfortante perceber que vivemos os mesmos conflitos e polarizações que agitavam o mundo há 500 anos. Pois isso sugere que o momento atual é mera exacerbação de uma dicotomia essencial da humanidade, que apenas se torna crítica em determinados períodos:
“Era uma dessas épocas em que a razão humana se encontra aprisionada em um círculo de chamas.”
Por exemplo, desde os primórdios até hoje em dia é possível dividir os seres humanos entre aqueles que buscam aprimorar seus conhecimentos e aqueles que cultuam o fanatismo:
“Ele estava farto de saber que não existe nenhum acordo duradouro entre aqueles que investigam, pesam, dissecam e se orgulham de ser capazes de pensar amanhã distintamente de hoje e os que creem ou afirmam crer, e obrigam seus semelhantes, sob pena de morte, a fazer o mesmo.”
Outra divisão básica se dá entre os que são a favor da tortura e os que ficam horrorizados com a simples ideia de torturar outro ser vivo:
“Sempre escandalizara a esse homem, cujo ofício era tratar dos outros, o fato de que pagassem a certos indivíduos para atormentar metodicamente seus semelhantes. Há muito que já se precavinha, não contra castigos físicos, pouco piores para ele dos que aqueles que padece um ferido quando operado por um cirurgião, mas contra o horror de qe fossem conscientemente infligidos. Se chegasse um dia a gemer, a gritar ou a denunciar levianamente alguém (...) a ignomínia caberia àqueles que obtivessem êxito na tentativa de desconjuntar a alma de um homem.”
Ou entre os que se indignam com o sexo alheio e os que se indignam com a injustiça e a violência:
“É estranho que para nossos cristãos as pretensas desordens da carne constituam o mal por excelência – observou pensativamente Zênon. – Ninguém pune com ódio e repugnância a brutalidade, a selvageria, a barbárie, a injustiça. Ninguém se lembrará amanhã de achar obscenas as pessoas de bom coração que virão contemplar meus estertores entre as chamas.”
Pois de modo geral os problemas são quase sempre os mesmos:
“Os homens se acostumam à ferocidade das leis de seu tempo, assim como às guerras deflagradas pela estupidez humana, à desigualdade das condições sociais, ao péssimo policiamento das estradas e à incúria das cidades.”
“Para além de tais insânias dogmáticas, pulsavam sem dúvida entre as irrequietas criaturas humanas aversões e ódios oriundos de sua mais recôndita natureza e que, no dia em que caísse de moda a prática do extermínio por motivos religiosos, cumpririam eles de outra forma o seu curso.”
E viva a Literatura que sempre pode trazer tantas luzes para as trevas internas e externas! E aqui me despeço, com muita gratidão a Marguerite Yourcenar, compartilhando mais algumas pérolas de sua “Obra em Negro”:
“Quem seria suficientemente insano para morrer sem pelo menos ter visto a torre de sua prisão?”
“Como sempre, sua indiferença para com o dinheiro resguardava-lhe a fortuna, evitando-lhe ao mesmo tempo os erros devido ao receio de perder e os que resultam da pressa em ganhar muito.”
“Alguns poucos maldiziam o homem que os arrastara a essa sarabanda da redenção. Outros, no fundo mais fundo de si mesmos, não ignoravam que desde há muito desejavam morrer, como a corda excessivamente esticada deseja apenas romper-se.”
“Valeu a pena estudar durante vinte anos para chegar à dúvida, que por si só cresce em todas as cabeças bem formadas?”
“Não há ninguém tão tolo que não tenha qualquer coisa de sábio.”
“Mesmo o pior ou o mais tolo de nossos pacientes ainda nos instrui, e suas gosmas não são menos infectas do que as de um homem sagaz ou de um justo.”
“E, todavia, após tantos anos dedicados à investigação anatômica da máquina humana, desistira de aventurar-se mais audaciosamente à exploração do reino limitado por fronteiras de pele, no qual nos julgamos príncipes, mas onde somos apenas prisioneiros.”
“A morte violenta estava em toda parte, tanto num açougue quanto num patíbulo. Um pato degolado gritava na pena que seria utilizada para grafar sobre velhos pergaminhos ideias que se supunham dignas de perdurar para sempre.”
“A carne, o sangue, os miúdos, tudo aquilo que palpitasse ou vivesse o repugnava nesse período de sua vida, pois o animal morre com a mesma dor que o homem, e não lhe apetecia digerir agonias.”
“Odi hominem unius libri.” [“Odeio o homem de um único livro.”]
“Qualquer soldado que se encontre num lugar deserto torna-se facilmente um bandido.”
“Jamais se ganha o que os outros julgam que se ganha.”
“O homem é um empreendimento que tem contra si o tempo, a necessidade, a sorte e o imbecil e sempre crescente primado dos números – disse mais pausadamente o filósofo. – Os homens matarão o homem.”
“Enclausurar o inacessível princípio das coisas no interior de uma Pessoa talhada à imagem do homem parece-me ainda uma blasfêmia, e no entanto sinto à minha revelia não sei que deus presente nessa carne que amanhã será fumaça.”
“Toda doutrina que se impõe às multidões dá garantias à inépcia humana.”
“É preciso amar alguém para nos apercebermos do escândalo em que consiste a morte de uma criatura...”
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2021/06/a-obra-em-negro-marguerite-yourcenar.html
site: https://www.facebook.com/sincronicidio