Rosa Santana 02/07/2010
A OBRA EM NEGRO – Margarite Yourcenar
Meu primeiro contato com a autora se deu via essa obra. Gostei bastante, apesar de em alguns momentos achar um tanto cansativo. É que Yourcenar se detém muito em descrições, o que trava a história e entendia o leitor. Mas esse mosaico renascentista me agradou, sobretudo por que gosto de romances históricos.
O livro conta a história de Zênon, um filho ilegítimo que veio ao mundo em 1.510, época que condenava os nascidos nessa situação, de tal maneira que o rebento era chamado de “bastardo”. O personagem se forma médico dedicando-se ao estudo da anatomia humana, estudando-lhe a circulação do sangue. Para isso há que dissecar cadáveres, prática condenada pela igreja católica de então.
O resultado de seus estudos ele transcreve para o papel, mas a censura o impede de publicar... Ademais, sua falta de fé em Deus, é mais um motivo para ficar na mira do Santo Ofício! Dupla condenação a desse estrangeiro, fugitivo e triste! Por um lado, enjeitado, a quem a família despreza e renega; por outro, o herege, a quem a Igreja condena! Assim, ele se põe a vagar por várias partes da Europa, fugindo do seu destino de enjeitado e de perseguido pela inquisição. É a famosa briga fé x ciência, espírito x matéria que levou tantos estudiosos à condenação, à excomunhão, à fogueira...
Ao final, preso e condenado, um dia antes da sua execução na fogueira, recebe a visita de um dos censores, que fora seu professor. O visitante oferece-lhe a chance de se isentar da condenação, para o que teria que se retratar diante dos inquisidores. Zênon nega-se ao papel e se suicida, a fim de que não se deixe morrer ante os apupos da multidão, no dia seguinte.
Sua morte é um processo lento, a que a autora descreve gastando cerca de três páginas e meia... O personagem é mostrado de forma racional, expondo a teoria a que ele mesmo tanto dedicou... É o moderno que sucumbe, porque a força da igreja medieval é muito grande e não lhe escapam os que estivessem “fora da linha” traçada por ela.
Profundamente humano, e preocupado com o destino do homem, o personagem lembra os versos do Carlos Drummond de Andrade, no poema “Mãos Dadas”:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
(...)O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens presentes,
a vida presente.
A morte do médico é emocionante, porque representa a primazia da igreja, de uma fé que, embasada em absurdos preceitos repressores, cerceadores, destruiu tantas possibilidades de evolução e tanto distanciou o homem do homem...
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Achei muito interessante o fato de a autora, no final, fazer um adendo em que explica de onde tirou, nos registros históricos, os fatos que coloca na obra, tanto para de Zênon, personagem fictício como para os demais, também fictícios. Por isso o livro parece tão verossímil. A reação dos que se submetem às cirurgias, o perfeito equilíbrio de Zênon, sua retórica diante dos membros da Santa Inquisição e todos os demais fatos narrados aqui, existem documentando a vivência de homens reais, no período medieval. Com certeza, isso engrandece o livro!! E a autora, também!
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TRECHOS:
“Passei vinte anos nessas pequenas peripécias a que os livros chamam de aventuras. Matei alguns de meus pacientes por um excesso de audácia que curou outros.” página 106
“Irritava-me que o homem desperdiçasse assim sua própria subsistência em projetos quase sempre nefastos, falasse em castidade antes de haver desmontado a máquina do sexo, discutisse o livre arbítrio ao invés de pesar as mil razões obscuras que o fazem piscar se bruscamente lhe aproximo um bastão dos olhos, especulasse sobre o inferno antes de haver questionado mais de perto a morte.” p. 108
“A música sempre me pareceu a um só tempo um medicamento específico e uma festa” p. 110
“Posso imaginar de mim para mim que o mármore, exausto de haver por longo guardado a aparência humana, se regozijasse por reverter simplesmente à condição de pedra...” p. 110
“Os homens acostumam-se à ferocidade das leis de seu tempo, assim como às guerras deflagradas pela estupidez humana, à desigualdade das condições sociais, ao péssimo policiamento das estradas e a incúria das cidades.” Pág. 210
(...)Apesar dos anzóis, das redes e dos cestos, a maioria dos peixes prossegue nas negras profundezas das águas seu roteiro sem vestígios, sem jamais se preocupar com os de sua espécie que se contorcem ensangüentados no tombadilho de um barco. p. 210
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E a epígrafe, muito elucidativa!
"..."Te pus no mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que contém o mundo. Não te fiz celeste e nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil escultor, descubras a tua própria forma..."
(Picco della Mironda - Filósofo que viveu entre 1463 e 1494)